As armadilhas do excesso de convencionalismo de O discurso do rei


Filmes de época contando episódios ou toda uma vida de personagens históricos são um filão permanente no cinema. Vez por outra, um diretor recorre a esse subgênero para apresentar um bom drama e, mais raramente, uma comédia inteligente que nos arrebata, adaptando ou não um livro. O caso de O discurso do rei (The king’s speech, 2010) é exatamente esse: o filme é um drama histórico sobre George VI, nome que Albert passou a usar quando se viu diante da necessidade de assumir o trono da Inglaterra com a abdicação de seu irmão mais velho. O grande nó da trama é o fato de Albert ser gago, o que compromete seu desempenho perante o público, que espera ouvir dele um discurso de incentivo, dada a situação do país no momento em que a trama se passa, a década de 40, época da destruição gerada pela Segunda Guerra Mundial. E Tom Hooper, seu diretor, demonstra aquele que será o fio condutor de toda a narrativa: o empenho do protagonista em vencer sua dislalia e fazer um pronunciamento à nação.
Em linhas gerais, esse comentário supra-citado resume a sinopse de O discurso do rei, bem como o faz o seu título, bastante sincero tanto no original quanto no português. O personagem principal é interpretado por Colin Firth, um ator que esbanja talento na figura de um homem acuado pela urgência de se colocar com galhardia e assertividade para seu povo. É imprescindível afirmar que a sustentação do filme é muito mais uma responsabilidade de Firth que de qualquer outro elemento que surja no filme. Hooper opta por uma abordagem extremamente convencional da história, uma adaptação do romance homônimo feita por David Seidler. Não há grandes invenções narrativas, nem mesmo grandes surpresas em relação à condução das trajetórias dos personagens, especialmente seu protagonista, o que desabona o filme em alguns momentos. O retrato de Firth para George VI é bastante acertado, se afastando totalmente da composição previsível. Diferentemente do que possa parecer, não é simples interpretar alguém com limitações na fala, e fica perceptível o trabalho minucioso do ator para dar conta de ser convincente nessa característica que seu papel exige.
Ao seu lado em muitas cenas, Geoffrey Rush é outro que esbanja competência, interpretando Lionel Logue, o fonoaudiólogo nada ortodoxo que se encarrega de cuidar do problema de fala de George VI. O discurso do rei é um filme de ambos, que dividem as cenas como quem dá conta de passes de bola em excelente forma. O desempenho de Rush é hipnótico, e atesta sua capacidade múltipla como intérprete, já observável em títulos como Shine – Brilhante (Shine, 1996) e Frida (idem, 2002), em que deu vida a Leon Trotsky. Inicialmente colocados como diametralmente opostos, seu personagem e o de Firth vão acabar entrando em acordo para vencerem juntos a gagueira do segundo. Aí reside um outro escorregão do filme, que se vale de um clichê que vem sendo repetido ad nauseam ao longo dos anos. Colocar dois personagens como antagonistas que nunca se entendem e que depois chegam a um denominador comum é um recurso que aparece inúmeras vezes nas comédias românticas, assim como em alguns dramas menores. Aqui, a História se ocupou de cristalizar esse lugar-comum, que poderia ter sido trabalhado de modo menos ostensivo por Hooper, um cineasta que ainda exibe poucos títulos em sua filmografia. Seu filme anterior é Maldito Futebol Clube (The Damned United, 2009), cujo roteiro foi escrito por ninguém menos que Peter Morgan, um dos melhores escritores de filmes em atividade. Mas seu sucesso só chegou mesmo com este O discurso do rei, que simplesmente arrebatou inúmeros prêmios por onde passou.
A questão das premiações sempre se atrela a critérios subjetivos, que não podem ser abarcados em uma análise minimalista como esta. No que se refere aos aspectos mais imediatos, entretanto, percebe-se que todo o “culto” feito ao filme é um tanto exagerado. Sua qualidade, como já se disse, está muito mais nas atuações de Firth e Rush que propriamente em seu roteiro ou sua direção. A Academia de Artes e Ciências Cinematográficas, contudo, teve o desplante de conceder 12 (!) indicações ao filme, cuja terça parte foi transformada em vitórias. É inacreditável lembrar que, na edição de 2011 do Oscar, títulos como Cisne negro (Black swan, 2010) e 127 horas (127 hours, 2010) foram preteridos em favor de O discurso do rei na categoria de melhor filme. O único prêmio entregue com justiça foi o de melhor ator para Colin Firth, conforme o Globo de Ouro demonstrou. É nítido que Hooper tinha nas mãos uma boa história, mas sua condução protocolar colocou muito do filme a perder. A obviedade também está na edição, que abusa dos contrastes exagerados entre a resistência do rei em seguir o tratamento de Lionel e a graça nada convencional deste último. O público poderia ter sido poupado de uma forma com tamanho ar de déjà vu, que demonstra um compromisso excessivo do diretor com o agrado aos votantes do Oscar.

A impressão que se vai desenvolvendo no espectador ao longo da sessão do filme é a de que ele foi feito sob encomenda, embrulhado para presente, por assim dizer. Não há problemas em se utilizar do convencionalismo, e muitos diretores já demonstraram isso. Mas há uma fronteira entre o simples e o simplório: o primeiro é a ausência de complicação que gera uma acessibilidade, enquanto o segundo é o medíocre, feito sem qualquer preocupação com um acabamento mais elaborado. Na avaliação geral, O discurso do rei pende mais para a segunda característica, o que se configura como um grande desperdício para sua natura tão promissora. Entre as curiosidades em torno do filme, vale comentar que o papel principal havia sido oferecido a Paul Bettany, ator de produções como Wimbledon – O jogo do amor (Wimbledon, 2004) e O código DaVinci (The DaVinci code, 2005), que o recusou. Pouco depois, ele manifestou seu arrependimento com a recusa do personagem, mas já era tarde demais. Fica a dúvida: será que Bettany, com todo o seu talento comprovado, cairia bem na figura de um rei com dislalia?
O resultado final de O discurso do rei, portanto, fica aquém do que poderia ter obtido, diante de sua sinopse interessante e digna de ser bem desenvolvida. Hooper, ainda em seu terceiro filme, demonstra a necessidade de se tornar um diretor mais maduro, colocando-se como um contraponto a outro nome igualmente jovem, porém de talento superior: Joe Wright. O diretor de Desejo e reparação (Atonement, 2007) teria muito a ensinar a ele, por seu modo competente de retratar épocas passadas. Como mais um elogio ao filme, cabe elogiar a perfomance de Helena Bonham Carter como a esposa do rei. Normalmente escalada para personagens dotadas de um perfil extravagante, aqui ela encara a contenção de uma jovem senhora do século passado com segurança, mostrando que ainda é capaz de oferecer um bom desempenho nesse sentido. No mais, resta a possibilidade de interesse constante em Firth, que é capaz de exaurir as nuances dramáticas de seu protagonista com o traquejo de um veterano que lapida sua inclinação para ser outros. Sua interpretação, em meio aos outros detalhes negativos do filme, é um trabalho de ourivesaria.

Comentários

  1. Ah, eu simplesmente adorei o filme, me envolvi bastante com a história do rei gago. Colin Firth é *___*

    http://cinelupinha.blogspot.com/

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