A noite americana ou a magia do fazer cinematográfico

Frequentemente associado à alcunha de “cineasta do amor”, François Truffaut declara todo o seu sentimento ao cinema através de A noite americana (La nuit américaine, 1973). O filme é mais uma daquelas obras irresistíveis no que tange ao uso do discurso metalinguístico, isto é, o cinema dentro do cinema. Grandes diretores de todos os tempos e lugares já lançaram olhares distintos sobre seu próprio ofício, e a lista só faz crescer. Como não se lembrar de Billy Wilder e seu retrato impiedoso da Hollywood dos anos 40 em Crepúsculo dos deuses (Sunset boulevard, 1950)? E da bela homenagem de Bernardo Bertolucci à sétima arte com Os sonhadores (The dreamers, 2003)? E a divertida caricatura de Woody Allen por meio de Dirigindo no escuro (Hollywood ending, 2002)? Esses são apenas três exemplos de como a temática do cinema sempre atravessou o próprio cinema.



No caso de A noite americana, os desdobramentos de sua trama se dão paralelamente à filmagem de um longa-metragem. O episódio serve como pretexto para uma série de reflexões pontuais sobre o papel do artista, as neuroses que podem acompanhá-lo e a competição insana que reside nesse ambiente tão glamourizado, mas cheio de problemas como outro qualquer. A tela fica pequena para tantos personagens que desfilam suas angústias existenciais e destilam seus venenos viperinos para quem quer que seja, configurando-se como ícones de gente famosa que normalmente se torna notícia nos tabloides da vida. O elenco coeso dá conta de mimetizar os aspectos mais caros a um ator, e pode ser visto hoje como a reunião de tipos lendários. Estão lá Jean-Pierre Léaud, habitual colaborador de Truffaut, em um personagem diferente de Antoine Doinel, e Valentina Cortese, atriz que virou sinônimo de raridade.
Léaud interpreta um ator em depressão por conta do fato de sua noivaestar saindo comum dublê, enquanto Cortese encarna uma atriz entregue à embriaguez que não consegue mais decorar suas falas. Fazendo um paralelo com Crepúsculo dos deuses, Severine, personagem de Cortese, é como Norma Desmond (Gloria Swanson): tem um passado de glória, mas o transcorrer do tempo só lhe fez mal e lhe tirou o brilho de outrora. O trabalho de composição de Cortese é primoroso, e ela encarna com muito talento o desespero de uma artista privada da capacidade de exercer sua própria arte. Sua personalidade altiva é dissolvida sutilmente pelo abuso de álcool, vício do qual ela não consegue escapar. Ambos os personagens citados são apenas dois exemplares de uma galeria notável de atores e atrizes que podem facilmente ser reconhecidos na realidade atual, não permitindo ao filme o rótulo de “inocente”. Truffaut também é um desses tipos, já que dá vida a Ferrand, o diretor do filme dentro do filme. Sua caracterização nos permite depreender que aquele é seu alter ego.
Essa mistura de fictício com real é um dos índices de fascínio de A noite americana, que matiza com discrição acurada os meandros da guerra de egos inflados que assinala a indústria cinematográfica desde há muito tempo. O filme está perto de completar quatro décadas de existência, mas, de modo algum, está datado. Na verdade, pouquíssimos aspectos se alteraram no meio desses artistas da imagem, da qual dependem para exercer seu ofício. Através desse filme, Truffaut dá o seu olhar carinhoso e, por vezes, severo, a respeito de um ambiente tão encantador como o é um set de filmagem. E os elementos que aproximam seu Ferrand dele mesmo vão além de sua caracterização física. Em cenas de fklashback, o cineasta do filme relembra a infância, quando roubava cartazes de filmes, como Cidadão Kane (Citizen Kane, 1926), algo que o próprio Truffaut confessou que fazia. Esse é apenas um dos indícios de como o diretor deixou fluir sua porção felliniana, para fazer referência ao diretor de 8 ½ (idem, 1963), que transformou seu deserto criativo em uma aula de cinema. A porção autobiográfica é sempre um risco, pois falar de si mesmo pode levantar acusações de egocentrismo, como as que comumente recaem sobre Woody Allen e seus filmes potencialmente representativos de sua própria vida e personalidade. Há que se ter em mente que, por mais que o diretor se coloque por inteiro em um filme e em um papel desempenhado, a esfera ficcional permeará todas as ações e falas que houver. É inevitável que ali surja o diretor-ator-personagem, sendo essas dimensões facilmente intercambiáveis e interdependentes.



O título dado ao filme é uma referência a uma técnica elaborada nos Estados Unidos para a filmagem de cenas noturnas durante o dia com o auxílio de um filtro especial nas lentes da câmera, técnica essa que acaba sendo utilizada por Ferrand em uma das sequências que ele precisa filmar. Curiosamente, o título italiano dado ao filme é Effetto notte, uma nomenclatura mais literal para o tal mecanismo. É assim, cheio de referências, que o filme vai caminhando, amparado por um roteiro muito afiado, escrito a três mãos, a saber: o próprio Truffaut, Jean-Louis Richard e Suzanne Schiffman. O segundo já havia trabalhado com o cineasta em Fahrenheit 451 (idem, 1966), sua incursão pelo cinema estadunidense, e em A noiva estava de preto (La mariée était en noir, 1967) e volta a oferecer um ótimo trabalho nessa nova parceria. Schiffman, por sua vez, também voltaria a trabalhar com o realizador em O amor em fuga (L’amour em fuite, 1979), conclusão da pentalogia sobre Antoine Doinel. A junção dos três nomes no roteiro de um mesmo filme foi mais do que acertada, e se traduz em algumas falas inesquecíveis, ao alcance de quem assiste à obra, e em cenas muito bem escritas e pensadas.
Com relação ao filme dentro do filme, ele se chama Je vous presente Pámela (Eu vos apresento Pâmela), e fica claro dentro do seu desenvolvimento que será um fracasso de bilheteria. A trama é banal: uma mulher cai de amores pelo sogro e decide fugir com ele. A opção de Truffaut por um enredo deveras simplório assinala seu interesse convergido para o processo de filmagem em si, bem como a convivência entre os atores e os outros profissionais envolvidos nele. Mais importa os elementos que caracterizam o fazer cinematográfico que o seu produto final. A ideia de falar sobre os bastidores de um filme foi apresentada a Truffaut por ninguém menos que Alfred Hitchcock, em uma entrevista concedida por Truffaut a ele, e que foi transformada em livro. A sugestão veio exatamente quando eles estavam conversando sobre os bastidores de uma filmagem, e acabou sendo aceita de pronto pelo francês. No decorrer de A noite americana, percebe-se a formação de famílias artificiais que se formam transitoriamente entre as pessoas envolvidas, e que se desfazem tão logo as filmagens se encerram. Entretanto, alguns vínculos provocados podem demonstrar sua permanência, a depender da empatia obtida entre os artistas.

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