Casa grande e os conflitos de uma sociedade em convulsão

"Todo brasileiro traz na alma e no corpo a sombra do indígena ou do negro."

O plano de abertura de Casa grande (idem, 2014) é pródigo em resumir o que vem a ser a estrutura geral do filme: uma habitação de proporções imensas, vista de frente a uma certa distância, com as luzes de vários cômodos acesas e o patriarca na jacuzzi ao ar livre terminando de se refrescar antes de mais uma noite de sono. Pacientemente, os créditos aparecem na tela, enquanto Hugo (Marcello Novaes) conclui seu banho, entra na casa e vai apagando as luzes. Logo, o espectador descobre que ali moram apenas mais três pessoas, a esposa Sônia (Suzana Pires) e os filhos Jean (Thales Cavalcanti) e Nathalie (Alice Melo). Aquela grandeza toda seria um sinal de desperdício ou ostentação? Sempre aos poucos, o roteiro de Fellipe Barbosa - que também dirige o longa - tenta oferecer respostas possíveis a essa pergunta, bem como a outras que vão se enfileirando ao longo da narrativa. 

Como o título evidencia, a produção apresenta semelhanças com o romance Casa grande e senzala, do sociólogo Gylberto Freire, também autor da citação que abre esta crítica. Para além da intertextualidade, o filme revela suas camadas à medida que, sob a ótica do garoto Jean, vamos estudando as contradições daquela família que já não encontra mais seu lugar em uma sociedade atravessada por profundas transformações de ordens diversas. As mazelas sociais a que eles pareceram sempre seguir incólumes agora já os rondam de alguma forma: é um castelo de cartas prestes a ruir. O adolescente é como outros de sua classe social: residente no Rio de Janeiro contemporâneo, não sabe o que é andar de ônibus e reproduz um discurso maniqueísta e retrógrado (se é que um dia já fez sentido) aprendido com o pai. Sonha com uma vida fora dos limites daquela casa (cada vez mais um elefante branco), mas o conforto de que (ainda) dispõe ali não é de se jogar fora.

Barbosa se utiliza de vários signos, alguns claros e outros mais discretos para dissecar os moradores. Sônia dá aulas de francês para ajudar no orçamento, e não poderia haver símbolo mais evidente de uma filiação aristocrática do que dominar esse idioma, quintessência da elite carioca no alvorecer do século XX e assim até o advento da hegemonia estadunidense - fato que qualquer estudante de História do Brasil pode guardar na memória. Diante da necessidade desconfortável (e qual necessidade não o seria?) de cobrar à aluna e amiga o pagamento pelas aulas do último mês, ouve uma proposta: por que não descontar o dinheiro da quantia que o marido da professora deve ao seu? O detalhe é que Sônia não fazia a menor ideia de que existia essa dívida e vai confrontar o marido a respeito. Esses e outros segredos estão incrustados na casa, e as paredes têm olhos, boca e ouvidos para todos. 

O diagnóstico daquela família é claro e triste: são reacionários incapazes de lidar com a própria decadência, sobretudo Hugo, que não abre mão de um orgulho besta de que o impede de conquistar um novo emprego. As economias, escondidas no closet em meio aos paletós com que desfilava outrora, estão perto de acabar, mas ele não perde a pose. Os empregados já não se justificam: é um luxo que não se pode mais manter. E será mera coincidência o fato de eles serem negros ou nordestinos? Entretanto, Casa grande não é um filme de extremos bem definidos, como acontece na sociedade. Não se trata de uma disputa entre vilões ou mocinhos, e mesmo o diagnóstico dado no início deste parágrafo pode ser relativizado ou acrescido de algumas nuances. Assim são as pessoas reais, o que só reforça a mímesis impressionante alcançada por Barbosa. Como não reconhecer indivíduos com os quais convivemos (no presente ou no passado) em Hugo, Sônia o Jean?



E Nathalie? Alguém aí ainda se lembra dela? Com quase nenhum direito a voz, a garota é um retrato do que deveria ser a mulher para muitos. Mas é justamente a autora das constatações mais sensatas de toda a família nas poucas vezes em que abre a boca. Fica até difícil sintetizar tantos sintomas de que ali o patriarca parou no tempo, e Barbosa se lembra de vários deles a cada sequência. Em críticas, foi apontado um parentesco entre Casa grande e O som ao redor no que tange a dissetar sobre a posição cada vez mais instável da classe média-alta brasileira, e as comparações têm razão de ser. Ambos não têm medo de tocar nas feridas de um grupo social que insiste em uma visão verticalizada e não se dá conta ou não admite que o mundo vai muito além dos seus cercados. A bem da verdade, são filmes complementares, que mostram que tal realidade não é comum apenas no Sudeste ou no Nordeste do País.

Quanto mais se distancia daquela grandeza falida, mais Jean (cujo nome deve ser pronunciado à francesa, como Sônia faz questão de frisar) é confrontado com o nível de descalabro que sua filosofia de vida herdada do genitor apresenta. Ele se envolve com uma garota moradora do bairro de São Conrado (localizado na área nobre do Rio de Janeiro) que serve como legítima vox populi de tempos mais arejados. Estudante do 3º ano do Ensino Médio e ilustração da frase de Freyre, pretende entrar na universidade através do sistema de cotas, para horror de Hugo, que enche o peito para dizer que nunca conquistou nada com sem esforço na vida. Será mesmo? Casa grande é um filme para a toda a família, e não se trata do lugar comum de produções com um humor leve e sem constrangimentos, mas porque todos, dos pais aos filhos, precisam entender que o mundo não cabe nos limites impostos por quatro paredes.

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