Não me abandone jamais: a vida com prazo de validade



Exemplares de filmes sobre a juventude não faltam no cinema, especialmente quando ela está relacionada a um triângulo amoroso. A junção dos dois elementos constitui um subgênero da sétima arte, e já rendeu obras maravilhosas ou, no mínimo, dignas de muita atenção. Não me abandone jamais (Never let me go, 2010) se encaixa mais apropriadamente na segunda possibilidade, fazendo valer todos os seus 103 minutos de duração. O filme versa sobre a urgência de viver e sobre peso dos erros, valendo-se de Kathy (Carey Mulligan), Tommy (Andrew Garfield) e Ruth (Keira Knightley), que se conhecem desde o final da infância, fase que é mostrada no começo da nrativa. Os três estudam em um colégio que apresenta um pequeno e importante diferencial, do qual eles serão informados abruptamente um pouco mais adiante.

Esse diferencial responde pela sutil inserção de toques de ficção científica no arco dramático do filme, resultando em uma fusão que soa arriscada, mas que dá muito certo por aqui. Esses protagonistas são, na verdade, duplicatas de outros, e foram criados com intuito de doar parte de seus órgãos ao chegar à idade adulta. Uma vez tendo sido descoberto esse propósito de vida pensando para eles por outrem, como viver? De que maneira é possível fazer planos a longo prazo, sabendo que a vida será curta e pouco proveitosa no final das contas? Atravessados por essa angústia, o trio vai se encontrar um no outro, distanciar-se e se encontrar novamente através dos anos, tornando o filme uma reflexão potente e algo dolorida sobre as instâncias da morte que podem rondar um ser humano ao longo de sua caminhada pela vida.

A sensação que parece acompanhar o espectador é a de que, por mais que se viva, nunca se pensa que se viveu o suficiente. Sempre há lacunas deixadas para trás, mesmo que involuntariamente. Nas entrelinhas, Não me abandone jamais apresenta sua linha de raciocínio: viver é sempre urgente e sempre nos parecerá curta e transitória; acostumemo-nos a isso. Não há via de escape para nenhum de nós. Contudo, no caso de Ruth, Tommy e Kathy, essa transitoriedade é amplificada, gerando o desconforto, a angústia e o desespero. Em meio a essa confluência de sentimentos dispostos em gradação, Ruth se mostra um grande óbice ao romance que vinha florescendo entre Kathy e Tommy, interpondo-se entre eles de maneira incisiva e sistemática. Anos mais tarde, quando os três já são adultos, ela estará corroída pelo arrependimento com relação ao seu ato negativo e, em um dos reencontros com o ex-futuro casal, demonstrará a sua procura por redenção. Torna-se curioso pensar nessa culpa de Ruth quando se pensa em sua intérprete. Se em Desejo e reparação (Atonement, 2007) ela interpretava uma jovem vitimada pela calúnia, aqui é ela quem comete um erro e passa a (curta) vida tentando se redimir.



Não me abandone jamais é apenas o terceiro filme de Mark Romanek, que vinha de um longo hiato até chegar a ele. Seu longa anterior é o perturbador Retratos de uma obsessão (One hour photo, 2002), em que redimensionou o potencial dramático de ninguém menos que Robin Williams. O filme de 2010 é um novo acerto de sua carreira ainda reduzida no cinema, embora tenha se iniciado na década de 80. Ele também tem um histórico na direção de videoclipes, tendo sido o nome por trás do clipe de Can’t stop, dos Red Hot Chili Peppers que veio a ser considerado o segundo melhor de todos os tempos. Nada mau para o currículo de alguém, diga-se de passagem. No caso de seu filme mais recente, a estética recortada do videoclipe é aplicada com parcimônia, o suficiente para não transformar a história em uma compilação de fragmentos. A narrativa é linear, embora seja apresentada em flashback, com a voz em off, por vezes, de um dos protagonistas. Com isso, ficamos interessados em saber como a história chegou ao ponto em que foi mostrada no começo que, em verdade, é o fim. Trata-se de um recurso usando abundantemente no cinema, e que frutifica positivamente na maioria das vezes, como é o caso aqui, mas que jamais funciona como qualidade isolada.

Romanek tem nas mãos um elenco jovem fantástico em seu filme. Entretanto, o talento do trio de atores reluz irregularmente. Quem se sobressai de verdade é Mulligan, que transita pelos outros dois personagens na pele de Kathy. É através da sua personagem que o roteiro apresenta as reflexões pontuais sobre o valor da vida e as consequências das escolhas e das atitudes. Aos poucos, ela vem trilhando um caminho de grandes atuações, e está muito perto de se tornar conhecida do grande público com os filmes vindouros que contam com ela no elenco. Drive (idem, 2011), que tem feito uma ótima carreira por onde passa, é um dos exemplos dessa notoriedade crescente. Knightley, por sua vez, poderia ter rendido um pouco mais na pele de Ruth, o que aumentaria o interesse por ela. Seu papel tem grande peso, pois ela é uma espécie de catalisadora das emoções inicialmente contidas de Kahty e Tommy. Se em outros trabalhos ela costuma pecar pelo excesso, aqui seguiu o caminho inverso, sendo eclipsada por Mulligan. Garfield é outro que poderia ter saído mais vezes do piloto automático. Seu Tommy parece sempre apoplético e não se posiciona nunca diante da vida e da disputa cada vez mais franca entre Kathy e Ruth por ele. Não seria nada mal um pouco de intensidade em seu papel.

A base para o filme está no romance homônimo de Kazuo Ishiguro, um grande sucesso de vendas que descreve as situações vividas pelos jovens com riqueza de detalhes, suprimidos em boa parte para caber em pouco menos de duas horas de projeção. A escolha de adaptar o livro é muito benvinda, por toda a sorte de discussões que ele suscita. A principal delas, como já se disse, é angústia da morte rondando a vida. É a morte que nos torna finitos, e é a nossa impotência e total vulnerabilidade diante dela que nos angustia. No caso dos seres humanos normais, já existe o incômodo de saber que um dia ela virá, mesmo que não se saiba quando. Essa ignorância leva a vontade de viver mais e mais. No caso dos protagonistas de Não me abandone jamais, eles não só morrerão como sabem que isso acontecerá muito em breve. Como eles demonstram, ainda que sutilmente, a angústia é redobrada. Principalmente para Kathy, que testemunha as situações-limite de seus amigos e sabe que a sua vez chegará. Na cena final, passada no presente da história, ela olha o horizonte distante e faz sua última reflexão sobre a existência diante de nós. Depois dela, somos impelidos a correr para vida de braços abertos.

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