As canções: falando de mim, de você e de todos nós



O entusiasmo que se segue ao final de uma sessão de As canções (idem, 2011) é plenamente justificável pelo que é apresentado até chegar a esse momento derradeiro. O novo documentário de Eduardo Coutinho transpira encanto, poesia, vivacidade e realismo, graças a uma vasta coletânea de histórias de pessoas ordinárias, no sentido primeiro do termo, que é comum. Partindo de uma ideia trivial, mas ainda não explorada pelo gênero até então, o diretor toca o coração, desperta o riso e faz refletir. Os depoimentos colhidos têm como esqueleto a seguinte indagação: qual é a música mais marcante da sua vida, à qual se acrescentam outras igualmente pertinentes: por quê? é possível contar o episódio da sua vida ao qual essa música se relaciona diretamente? Essas questões centrais estão sempre subscritas aos testemunhos, e compõem uma geleia geral de causos que apontam para muitos elos comuns a qualquer pessoa.

Coutinho é um paciente ouvinte de histórias. Essa é a maior qualidade e a maior necessidade que um ofício como o seu exige. As pessoas que, voluntariamente, estão ali depondo sobre passagens importantes de suas vidas precisam de atenção e tranquilidade, e ele é exatamente esse tipo de interlocutor. Suas palavras, naturalmente, são esparsas e, quando vêm, jogam luz sobre quem está ali, no palco, contando o que viveu como se estivesse revivendo. O recurso de ambientar as entrevistas em um teatro, aliás, é utilizado pela segunda vez por Coutinho. Ele havia feito o mesmo em Jogo de cena (idem, 2007), sem dúvida, um de seus melhores trabalhos, inserido em uma carreira que já tem mais de 40 anos de duração. No caso de As canções, porém, ele contou apenas com anônimos para concederem seus depoimentos, e conseguiu pessoas muito parecidas com qualquer uma dessas com as quais se pode esbarrar na rua, a qualquer momento.

Como se trata de leigos em música, as vozes e os ritmos nem sempre se encontram quando os depoentes entoam as canções de suas vidas. Mas isso pouco importa. Todas fluem com grande naturalidade, tal qual uma água de nascente desfila serena até a foz do rio de que faz parte. A grande maioria das histórias emolduradas pelas músicas é de sofrimento amoroso. Pode-se dizer que este tenha sido o caso de quase todas as pessoas que contaram sobre parte da vida. Algumas músicas até se repetem em depoimentos diferentes, evidenciando o poder de uma canção e sua abrangência. A grande maioria delas também é um tanto antiga, sendo mais conhecidas por gerações com idade superior a 40 anos, e trazem à tona um pouco do passado musical do Brasil. Em alguns casos, o próprio Coutinho chega a cantar uns trechos, auxiliando os entrevistados mais esquecidos. Por falar nele novamente, um detalhe curioso de sua vida pessoal chama a atenção aqui: faz décadas que ele não ouve música (!). Em se tratando do diretor de um documentário sobre a relevância de canções na vida de pessoas absolutamente normais, a informação é, no mínimo, espantosa. No entanto, ele parece, em alguns momentos, compartilhar do gosto musical de seus entrevistados, haja vista a relativa antiguidade da maior parte das canções, conforme já se comentou.



Merecidamente, As canções recebeu o prêmio de melhor documentário no Festival do Rio de 2011, fazendo reluzir ainda mais o trabalho de um cineasta que se interessa, acima de tudo, pelo humano, e pelo componente que existe em cada um que nos faz encaixados nesse “rótulo”. Homens e mulheres falam abertamente no documentário, comentando sobre amores perdidos, corações partidos, perdas irreversíveis. O depoimento mais diferente é o de um rapaz que conta sobre a relação que mantinha com seu pai. Ele diz que não convivia diariamente com o pai, que trabalhava por vários dias embarcado em uma plataforma. Quando estava em casa, gostava de chamar o então garoto para ir à praia, e o filho nem sempre se entusiasmava com o programa. Até que o pai morreu e as suas quase recusas viraram um grande fardo, pesado demais para se carregar, e a canção que se lhe tornou marcante é uma espécie de pedido de desculpas, como ele mesmo diz. De longe, é uma das passagens mais tocantes de todo o documentário.

Revisitando um pouco da obra pregressa do diretor, é possível lembrar de um dos entrevistados de Edifício Master (idem, 2002), que cantou uma música que ele dizia ser muito marcante em sua vida. O depoimento poderia perfeitamente fazer parte de As canções, e talvez tenha sido o germe da ideia de fazer este último, que foi amadurecendo ao longo dos quase dez anos que separam um filmedo outro, e apontam para um interessante diálogo entre os exemplares de sua obra. Em entrevista a um famoso site brasileiro de cinema, Coutinho defendeu sua opção por gravar os depoimentos sem a presença de qualquer acompanhamento musical. Segundo ele, todos os depoentes cantaram a capella para que ficasse nítida a letra de cada música, não importando qualquer instrumento que pudesse servir de base para as tais canções. Tanto a escolha quanto a sua justificativa são mais do que razoáveis, e atestam a grande validade de se unir simplicidade e magnitude às histórias de vida mostradas, todas com uma pitada de cada um de nós.

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