Atlantic city ou as intrigas secretas de uma cidade grande


Louis Malle nasceu na França, viveu 63 anos e então faleceu. Nesse longo ínterim, dirigiu pouco mais de 10 filmes, alguns dos quais figuram como clássicos indiscutíveis em muitas listas. Atlantic city (idem, 1980) é posterior a quase todos esses clássicos, o que não significa dizer que seja um filme menos importante ou de menos qualidades. Narrado com vigor e destreza, o filme é um dos últimos grandes papéis de Burt Lancaster, intérprete de Lou Pascal, um gângster velho de guerra que lhe rendeu indicações ao Oscar e ao Globo de Ouro. Ele se apegou fortemente às lembranças do passado em que era temido, respeitado e querido por todos, até que o seu caminho se cruza com o de uma simpática e agoniada garçonete chamada Sally (Susan Sarandon), cujo sonho de vida é se tornar crupiê em Monte Carlo.

O encontro entre ambos, porém, não acontece logo. Antes, Lou é apenas um observador do modo charmoso como Sally se apresenta na janela do apartamento defronte ao seu todas as noites. Até que chegue a ela, conhecerá Dave (Robert Joy), que o convence a entrar em negócio de tráico de drogas que dá errado e culmina com a morte do rapaz, que vem a ser o ex-marido de Sally. Ele fugira algum tempo antes com a cunhada, e volta disposto a recuperar o seu amor e o seu carinho, que ela lhe nega. O episódio de contornos trágicos funciona como o ensejo para que Lou, de certa maneira, volte à ativa em seus esquemas no submundo. Subitamente, ele se vê com a missão de salvar a pele da bela garota e, de quebra, intimidar alguns bandidos maus feito pica-paus.



Malle oferece, com Atlantic city, uma deliciosa homenagem aos filmes de gângster, deixando cada minuto de narrativa completamente interessante, o que é fundamental para a qualidade do filme como um todo. A história pega o espectador logo no início, e o deixa cúmplice de Lou e de suas peripécias tão atraentes. O protagonista apresenta indícios de um heroísmo meio tortuoso, sem estar acima do bem ou do mal. Ele é o típico homem na hora errada e no lugar errado que precisa virar a mesa o jogo e dançar conforme uma música cujo ritmo ele já conhece muito bem. E essa dança tem uma bela coreografia pensada por John Guare, responsável também por diálogos espirituosos e muitas passagens de tom jocoso. Os personagens estão longe da caracterização chapada que muitas vezes acomete filmes de boas intenções cujos resultados finais são desestimulantes. Felizmente, o realizador é talentoso demais para cometer esse tipo de equívoco, tendo a parceria com roteirista supracitado para dar conta da tarefa de contar uma boa história. É ótimo ver o grande Lancaster tão à vontade como Lou, quando já se encontrava sexagenário e com grandes personagens no currículo, entre os quais se encontra o Dom Fabrizio de O leopardo (Il gattopardo, 1963), do não menos legendário Luchino Visconti.

Outro grande destaque é a presença luminosa de Sarandon, excelente como Sally e com o adicional de ainda exibir aqui uma fresca juventude. Malle inclusive encontra deixas para mostrar suas curvas com certa discrição, e compartilha com a plateia o encanto de Lou pela sua bela aparência, nas cenas da janela. E sua dobradinha com Lancaster, que não tarda a começar no filme, faz muito bem à narrativa, reforçando a torcida do público para que tudo venha dar certo para o protagonista e ele consiga faturar aquela bela mulher, no melhor sentido do termo. Em sua carreira, Atlantic city obteve vários prêmios, como o Leão de Ouro de diretor no charmoso Festival de Veneza, melhor roteiro e melhor ator pelo Círculo dos Críticos de Cinema de Nova York, todos com muita representatividade na comunidade cinematográfica, de modo geral. É fato que os prêmios não são garantia de que o filme premiado seja bom, haja vista a longa história de injustiças escrita anualmente em vários casos. Contudo, este é realmente um bom filme, que vale a sessão.

Para a plateia contemporânea, o longa pode soar um tanto antiquado por alguns códigos de conduta de Lou, mas isso não é o menor demérito para o filme, que serve, exatamente por essa aura démodé, para apresentar uma história de descaminhos e retornos. O roteiro não chega a ter a complexidade de uma intrincada montanha-russa, mas está longe de ser simplório. É daquelas obras que não subestima a inteligência do público, o que não quer dizer, por outro lado, que invista em um sem-número de reviravoltas. Atlantic city vale pelo seu ótimo roteiro e pelos desempenhos digníssimos de seu elenco coeso, tal qual já se comentou anteriormente. Fica nítido que Malle era um grande diretor de atores, tendo sido capaz de extrair intepretações brilhantes de Lancaster e Sarandon, algo que costumava se repetir em seus trabalhos. Perdas e danos (Damage, 1992) é outro exemplar dessa sua grande capacidade como realizador. No fim das contas, Atlantic city é um filme cujo todo funciona otimamente e chama a atenção pela fluidez, organicidade e qualidade.

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