Uma injustiça revisitada em 12 anos de escravidão

Reconhecidamente, a questão da escravatura é o calcanhar de Aquiles dos Estados Unidos. Ainda hoje, o tema reverbera pelo país e o mostra o quanto o preconceito étnico está imbricado na cultura de uma nação que o mundo é ensinado a reverenciar, temer e desejar. Não é sem razão, portanto, que qualquer criação artística que ponha o dedo nessa ferida chame a atenção e cause ao menos algum tipo de desconforto, e não somente para os retratados, mas para quem se coloca na posição de espectador de um circo tétrico de falta de humanidade entre iguais. Realizador de obras incômodas sobre os traumas e intermitências do corpo físico, Steve McQueen decidiu compartilhar a sua ótica sobre o assunto através de 12 anos de escravidão (12 years a slave, 2013), praticamente nascido como um filme obrigatório, por sua coragem de ser denunciatório sem cair no outro extremo: a vitimização dos personagens principais que acompanha. 

Ao longo de seus 133 minutos, a narrativa alterna seus pontos de vista para contar a história de Solomon Northup (Chiwetel Ejiofor), um negro que já tinha conquistado a sua liberdade em plena década de 40 do século XIX. Apesar da sua condição de homem livre atestada no papel, nem todos encaravam a situação com naturalidade, mas a autoestima elevada do protagonista contribuía para que ele não chegasse a se abalar com esse sectarismo ora velado, ora explícito. Até que uma emboscada milimetricamente construída o coloca novamente como escravo em plantações no estado da Louisiana, e a situação se arrasta por 12 anos, como está evidente pelo título da obra. Todo esse período é mostrado com força desconcertante pelas lentes de McQueen, que traz consigo o ineditismo até aqui de assinar um filme sobre a escravidão a partir do olhar de um negro. E não faltam cenas pesadas e emocionantes que desafiam a passividade do público e provocam reflexões urgentes.

Um dos maiores acertos de 12 anos de escravidão é fugir a maior parte do tempo da cartilha clássica de dramas sobre sujeitos em luta para recuperar o que a vida lhes roubou. A começar pela trilha sonora, que é empregada com parcimônia e fica ausente em vários momentos onde outros compositores a inseririam de modo escancarado. Como não cai nessa tentação manipuladora, McQueen deixa a pungência das cenas por conta dos atores e do roteiro, adaptado pelo próprio cineasta em colaboração com John Ridley. E o elenco não deixa por menos, entregando desempenhos avassaladores independente de suas classificações como principal ou coadjuvante. Ejiofor encabeça a trama e atua sobretudo com os olhos, enxergando cada ato de injustiça e mantendo acesa em seu fundo uma centelha de esperança de sair daquele cenário de desgraça. Aliás, os protagonistas dos filmes de McQueen sempre têm nos olhos uma forte expressividade, através dos quais dizem muito mais do que com multidões de palavras.


Lado a lado com ele, estão Lupita Nyong’o e Michael Fassbender (em sua terceira parceria com o diretor), que interpretam, respectivamente, Patsey e Edwin, uma outra escrava e o senhor de ambos. São personagens ricos e fascinantes em suas lutas e limitações, e vão além do maniqueísmo ao adotar condutas passíveis de questionamento. Como Ejiofor, Nyong’o empresta seu corpo às várias torturas físicas impingidas pelo execrável Edwin, que nos faz odiar cada minuto de sua presença em cena. A veracidade dos seus ferimentos é cortante, e McQueen filma tudo com uma acuidade descomunal, sem demonstrar qualquer preocupação estética. São cenas horrorosas, como o contexto e o tema pedem, totalmente afastadas da assepsia impressa em Shame (idem, 2011), seu filme anterior e não menos devastador. Em determinado momento da história, Solomon, que tem até mesmo o seu nome mudado, se vê como algoz da própria amiga, fustigando suas costas com o máximo de cuidado que pode para, em seguida, ser substituído por Edwin em sua fúria animalesca originária da fuga de sua “propriedade”. Também há que se destacar o igualmente sórdido John, outro perseguidor de Solomon, vivido por um Paul Dano capaz de acender a ira da plateia.

A base para o filme foram as memórias de Solomon, que transformou seu calvário em livro, do qual McQueen se apropriou esplendidamente e construiu um épico denunciatório de alta relevância. Felizmente, a Academia voltou seus olhos para a produção e lhe concedeu indicações em 9 categorias, incluindo a principal. Não há como descartar que se trate de uma decisão política oportuna que, em primeira instância, atrai a atenção do público para a cerimônia do Oscar, sempre tida como conservadora, haja vista o seu histórico de mais de 80 anos de vitórias para filmes quadrados. Seja como for, é bom ver um filme corajoso e de apelo universal figurar entre os considerados melhores do ano. É também a coração do trabalho de um diretor que se dedica a analisar com certa perícia os flagelos do corpo que, dessa vez, alcançam uma amplitude muito maior. Se em Fome (Hunger, 2008) havia uma causa nacional sendo defendida e em Shame uma geração vazia era sintetizada na figura de um viciado em sexo, 12 anos de escravidão é o grito de desespero de séculos de uma submissão absurda e injustificável sob qualquer ângulo.

8/10

Comentários

Postagens mais visitadas