Luzes da ribalta e o elogio da generosidade
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Apesar de embriagado, Calvero ainda conserva alguns reflexos e consegue impedir Thereza de arrancar sua vida, e eis o início de uma belíssima amizade que tanto bem fará a jovem desiludida. Desde os primeiros minutos de um na presença do outro, o artista dá mostras de sua generosidade, encontrando meios de garantir um lugar tranquilo para a moça. Como o quarto dela está impregnado pelo cheiro de gás, ele não hesita em subir com ela nos braços para o seu quarto, e chega a sugerir a Thereza que eles se passem por marido e mulher para evitar qualquer constrangimento por parte das pessoas, que jamais poderiam admitir um casal de amigos em tamanha proximidade. Uma vez estabelecido esse acordo entre ambos, o desafio de Calvero passa a ser apresentar à bailarina o lado bom da vida (qualquer semelhança com o título nacional do longa de David O. Russell é tão somente uma coincidência das mais infelizes). E não falta empenho da sua parte nesse sentido, o que só faz crescer nossa afeição pelo personagem, brotada junto com sua entrada em cena cambaleante e sorridente.
Para além de elogiar a generosidade repetidas vezes através de seu enredo, o que Chaplin faz em Luzes da ribalta é pensar a respeito da condição do artista e de seu papel no mundo. Indiscutivelmente, ele deixou sua marca no Cinema como um ás da comédia, porém olhos mais atentos sempre puderam notar uma melancolia subscrita à figura do Vagabundo, que, por sua vez, confunde-se com a imagem de um palhaço, de quem se cobra sempre a alegria, mas que pode trazer uma tristeza recolhida sob a maquiagem pitoresca. De alguma forma, essa parecia ser a sina do próprio Chaplin e de todo artista cômico: fazer rir passa a ser uma obrigação, e o criador se torna uma espécie de refém de sua criatura, num esfumaçamento da fronteira entre si e seu alter ego. Muitos outros artistas enfrentaram ou enfrentam ou mesmo problema, como Woody Allen, muitas vezes confundido como Alvy, Isaac, Sandy, Leonard e tantos outros personagens de sua vasta carreira a quem ele mesmo deu vida, embora o cineasta já tenha declarado que jamais poderia ser como qualquer um deles, ou não teria a disciplina exigida para se fazer um filme sequer.
Há momentos engraçados em Luzes da ribalta, mas eles decorrem de alguns diálogos e números de Calvero, que relembra seus áureos tempos e compartilha essa memória com o público, que pode se reportar ou não a trabalhos anteriores do diretor, a depender de sua bagagem. Essencialmente, esse é um lindo drama que exalta a vida em suas singularidades, e um atestado da versatilidade de Chaplin, que não era extraordinário apenas atrás das câmeras, mas demonstrava um talento notável como ator e compunha muito bem para todos os seus filmes - a trilha sonora, também de sua autoria, não deixa mentir. A mais inesquecível delas talvez seja justamente a que carrega a homonímia com o título, vencedora do Oscar de melhor canção original e reinterpretada em várias versões pelo mundo. Os acordes dão conta de expressar a alquimia entre o sorridente e o melancólico, entre o revés e o recomeço, e também a substituição cruel e inevitável (?) do velho pelo novo, outro tema colocado em pauta pelo roteiro, mais uma incumbência de Chaplin. No fundo, Calvero também precisa retomar seu amor próprio, e a convivência com Thereza é decisiva nesse processo, de que somos testemunhas por pouco mais de duas horas.
Apesar de ser o antepenúltimo filme do cineasta, Luzes da ribalta está cheio de autorreferências que deixam a sensação de que se trata do seu trabalho derradeiro. A começar pelo ano em que a história se passa: 1914, ano em que dirigiu o seu primeiro filme, um entre vários curtas que se sucederiam pelas décadas seguintes. Esse também foi o ano de eclosão da Primeira Guerra Mundial, apontada por alguns historiadores como o verdadeiro marco inicial do século XX, até então surgido apenas nos calendários, já que os costumes e ideologias do século anterior ainda se mostravam muito arraigados nas sociedades europeias. Em alguns detalhes, essa questão é incorporada à narrativa, mostrando o ensaio de mudanças importantes na posição social da mulher, por exemplo, embora muitos avanços ainda estivessem por acontecer, inclusive à época de filmagem do próprio longa. Ainda sobra espaço para ninguém menos que Buster Keaton, outro mestre do humor físico e do Cinema mudo que contracena aqui pela primeira e única vez com Chaplin e afasta de vez qualquer possibilidade de comentário sobre uma rivalidade entre os dois. É mais um presente dele para nós - e que não nos ouça o Matthew (Michael Pitt) de Os sonhadores (The dreamers, 2003), que insistia em preferir Keaton.
Essa coletânea de momentos singelos e emocionantes faz deste um filme para ser constantemente lembrado e revisitado, não importando a idade ou o estado mental do espectador. Os temas explorados por Chaplin não perderam sua universalidade nem sua atualidade, e também funcionam como a transposição para a tela dos dramas pessoais do diretor, que sofreu com o abandono de seu pai, a loucura da mãe e anos de miséria. Toda essa penosa matéria-prima se convergiu para filmes de rara beleza, oásis de sensibilidade e carinho em tempos de humor tão cínico e autoindulgente. O percurso nobre de Calvero, marcado por vários sacrifícios, é a prova de que a generosidade sabe a sua hora e o seu lugar, e o amor pode se traduzir na distância, em deixar respirar se isso valer o aprendizado ao outro, exatamente como ele faz com Thereza. A parceria entre eles se revela brilhante de perto ou de longe, como grandes amigos que não perdem o carinho recíproco no tempo em que se encontram separados. É o relacionamento que fica entre eles, já que Calvero recusa a proposta de casamento dela, preferindo o amor que os gregos chamam fileo. E o que dizer do ato final, de uma poesia indescritível? Somente com os olhos postos diante da cena podemos compreender a sua preciosidade. Nada mais resta a dizer.
10/10
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