Ernest e Célestine, uma amizade para além de qualquer paradigma
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Contrariando todas as histórias seculares que condenam a amizade entre ursos e ratos, os protagonistas se aproximam quando Ernest parte em busca de comida e se envolve em uma confusão com a Polícia ao cair de boca nos doces do estoque de um urso lojista. Então, o seu caminho se cruza com o de Célestine, que, a princípio, vê nele somente um aliado, já que precisa dar conta de uma missão: reunir a maior quantidade possível de dentes para levar ao consultório dentário da sua cidade. Então, uma das belas sacadas do roteiro de Daniel Pennac, que tem por base o livro de Gabrielle Vincent, é revelada: roedores por natureza, os ratos da cidade de Célestine ficaram com a dentição desgastada por conta do extenso trabalho de escavação das rochas, e acabam precisando de próteses adequadas. A solução encontrada pelos dentistas locais é se aproveitar de uma lenda corrente entre os ursos, que contam aos seus filhotes que eles ganham uma moeda quando deixam o dente de leite que acabaram de perder sob o travesseiro. Célestine e os demais ratinhos fazem o trabalho de coleta desses dentes, mas ela não anda bem-sucedida na tarefa.
Surge daí uma proposta irrecusável da parte dela a Ernest: em troca de ela livrá-lo de ir preso por invasão de domicílio, ele deve ajudá-la a reunir o máximo de dentes para levar à sua cidade e cumprir sua tarefa com louvor. De uma simples parceria com interesses individuais, nasce uma linda amizade entre os dois, que servem como um belo ensejo para a discussão sobre o peso dos preconceitos e o quanto deixá-los de lado podem ser a garantia de maravilhosas descobertas. Em pouco tempo, ambos deixam de levar em conta a natureza um do outro e se entregam de todo o coração a um relacionamento baseado no carinho e no querer bem, livre de quaisquer segundas intenções. Tudo isso envolto em uma atmosfera que remete aos livros infantis, com cenários e personagens coloridos com aquarela, uma técnica cada vez menos empregada pelos grandes estúdios. A sensação que se tem diante de Ernest e Célestine é de um delicioso retorno à infância, uma época em que a sinceridade dos sentimentos é maior e mais sólida. Faz parte do senso comum afirmar que, quando uma criança demonstra gostar de alguém, é porque gosta mesmo.
Em apenas 80 minutos, a animação também abre espaço a um debate sobre a luta de classes, questão que não perde a atualidade e é simbolizada aqui pelo confinamento dos ratos aos ambientes subterrâneos em contrapartida à permanência dos ursos na superfície. Ao se tornarem amigos, Ernest e Célestine bagunçam essa estrutura milenar, que entram em conflito direto depois de tanto tempo de guerra fria. Não há como não traçar paralelos com a realidade, mesmo porque toda história de ficção, por força, é minimamente ancorada em elementos do mundo que conhecemos, e aqui não poderia ser diferente. O rei de Célestine e dos demais ratos é símbolo de uma monarquia anacrônica, cada vez menos funcional e mais decorativa, que assume a posição de juiz imbuído de conceitos igualmente ultrapassados, mas que encontram na dedicação de Ernest, capaz de fazer o bem sem olhar a quem (outra máxima popular apropriadamente evocada), a dissolução perfeita. O mesmo vale para os outros ursos, cuja salvação vem de onde menos se espera. A essa altura, fica muito difícil manter a tal separação de cenários para cada espécie.
Ernest e Célestine é mais um sensacional representante da animação francesa, que já havia entregado ao seu público o mágico Contos da noite (Les contes de la nuit, 2011), e se tornou um dos cinco finalistas ao Oscar na categoria. Tanto o urso quanto a rata são irresistíveis em suas travessuras e pequenas gentilezas, e evocam a inocência de um tempo em que o público infantil dispunha de opções mais condizentes com a sua idade. Hoje, parece haver uma preocupação excessiva dos estúdios e diretores e cativar também os adultos, e sobram piadas cínicas e referências a práticas e pensamentos que ainda não fazem sentido para os menores. Não que Ernest e Célestine abrace apenas as crianças com sua premissa: pelo contrário, somos todos adultos cheios de preconceitos que limitam o alcance da nossas visões e corações precisando aprender sobre como abandoná-los e dar as mãos a pessoas que se podem revelar queridíssimas. Vendo o amor incondicional que nasce entre esses dois, aprender a superar estereótipos de todas as frentes se torna muito mais gostoso e nos parece bem mais palpável.
9/10
Como sempre, um ótimo texto, faz jus à beleza do filme. Parabéns, Patrick!
ResponderExcluirObrigado, rapaz!
ResponderExcluirÉ um filme lindo de se ver e de se escrever!