A entrega radical de dois atores em Clube de compras Dallas

Tomando por base uma temática que não perde a atualidade, o diretor Jean-Marc Vallée assinou a direção de Clube de compras Dallas (Dallas buyers club, 2013). O epicentro da trama é a proliferação do vírus da AIDS em plena década de 80, época na qual Ron Woodroof (Matthew McConaughey), um eletricista de vida simples, descobre-se infectado. Heterossexual que não faz a menor questão de esconder sua ojeriza aos gays, ele vai da negação à luta após o diagnóstico da doença, até então associada a homens que mantinham relações sexuais com outros homens, e vê seu universo se transformar por completo. Desde o princípio, o roteiro escrito por Craig Borten e Melissa Wallack, estreantes na função, apresenta e ratifica as expressões da dita macheza de Ron, que aparece pela primeira vez nos bastidores de um rodeio transando com duas mulheres enquanto confere o desempenho dos toureiros. Aquela rotina de sexo casual e sem preservativo está prestes a ruir. 

Traçado esse perfil nada abonador do protagonista, fica evidente que a preocupação não é em restringi-lo à condição de uma vítima das circunstâncias, e sim de alguém que tem sua parcela de responsabilidade na contração do vírus e que precisa arcar com as consequências desse fato. Àquela altura, os tratamentos contra a doença ainda se encontravam em fase experimental, o que significava, entre outras coisas, um acesso altamente restrito às drogas sintetizadas em laboratório. Diante das interdições no caminho para a sua cura, Ron mergulhou em pesquisas sobre o seu caso e foi descobrindo que a AIDS não era exclusividade dos homossexuais – algo que seus supostos amigos de até então sequer poderiam conceber. Em sua luta por uma sobrevivência pelo maior tempo possível (o médico que o examinou lhe dera 30 dias), ele acaba descobrindo medicamentos alternativos com o Dr. Vass (Griffin Dune), que ainda não tinham sido chancelados pelo governo dos EUA.

Indo nessa direção, Ron acaba cria o tal clube do título, que funcionava em paralelo às pesquisas oficiais e, rapidamente, atraiu inúmeros compradores que, como ele, desejavam postergar sua hora derradeira. O mais improvável dessa organização é que ele se aproxima de Rayon (Jared Leto), um travesti contaminado pelo vírus que representa o que o eletricista mais repele. Aos poucos, nasce uma amizade entre os personagens, através da qual emerge a humanidade daqueles homens de lugares, pensamentos e atitudes tão diferentes, para dizer o mínimo, unidos por uma mesma condição. Nesse sentido, Clube de compras Dallas mostra de onde vem boa parte de sua força. É inevitável discorrer sobre o filme sem tecer elogios à entrega radical de McConaughey e Leto aos seus respectivos papéis, nos quais se revelam tão bem encaixados que não caímos na tentação de imaginar outros atores em cena. Ambos dotados de nítida beleza, eles precisaram encontrar o avesso de si mesmos, perdendo muitos quilos no caminho e se afastando de qualquer glamour.


Não por acaso, a temporada de premiações, incluindo o Oscar, abriu espaço aos dois, que chegaram a ápice de um reconhecimento merecido, traduzido em vitórias no Globo de Ouro e no Sindicato dos Atores de Hollywood, para citar dois exemplos. Uma rápida olhada em suas trajetórias até ali permite constatar que as escolhas de Leto sempre foram mais criteriosas: já foi dirigido por nomes como David Fincher em Clube da luta (Fight club, 1999) e O quarto do pânico (Panic room, 2002) e Darren Aronofsky em Réquiem para um sonho (Requiem for a dream, 2000), pelo qual já merecia vitória junto à Academia. Por sua vez, McConaughey passou um considerável período da carreira enfileirando comédias românticas de gosto duvidoso, como Um amor de tesouro (Fool’s good, 2008) e Minhas adoráveis ex-mamoradas (Ghosts of girlfriends past, 2009), em que se encontrou pela primeira vez com Jennifer Garner, também presente aqui. De 2011 para cá, sua sorte e suas escolhas mudaram e, com elas, vieram o respeito e os elogios da crítica e do público, sedimentados por títulos como Killer Joe – Matador de aluguel (Killer Joe, 2011) e Amor bandido (Mud, 2012).

Todo esse trabalho de transformação física se soma a um longa bem escrito e dirigido, que não cabe na classificação de “filme de atores”. É justamente em adotar essa perspectiva reducionista que mora o perigo. A maneira como a câmera acompanha a jornada penosa de Ron, sem a preocupação de condená-lo ou absolvê-lo, também merece atenção, e mostra um cineasta amadurecido em relação a outros trabalhos, como o irritante C.R.A.Z.Y. – Loucos de amor (C.R.A.Z.Y., 2006) e com muito mais a dizer. Vallée não escolheu o caminho óbvio de mostrar um protagonista a caminho da redenção, mas sim um ser humano repleto de falhas e disposto a qualquer coisa para salvar a própria pele, o que já põe Clube de compras Dallas acima de vários dramas lançados anualmente. Nos aspectos técnicos, há que se destacar a montagem. Ainda que a estratégia de contabilizar os dias que Ron vive após o diagnóstico não seja exatamente pioneira, ela funciona muito bem e acaba sendo um sopro de otimismo em meio a uma narrativa tão densa, cujo maior mérito é levar ao Cinema uma discussão que segue oportuna e está longe de chegar ao seu fim.

8/10

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