Relacionamentos debruçados sobre a palavra em Noites de lua cheia
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Essas peculiaridades tornam difícil comentar sobre um longa-metragem específico do diretor, já que analisar um é, em grande parte, fazer menção a vários outros. Veja-se o caso de Noites de lua cheia (Les nuits de la pleine lune, 1984): sua sinopse revela outro forte ponto de contato entre as suas obras, que é o da simplicidade extrema tomada como gancho para reflexões e ironias amplas sobre a confusão dos amantes e a inquietude das almas. Tudo gira em torno de Louise (Pascale Ogier), que divide o mesmo teto com Remi (Tchéky Karyo), seu namorado, em uma cidade pacata nos arredores de Paris. Enquanto ele tenciona oficializar o relacionamento, com todas as prerrogativas necessárias, ela teme perder a liberdade e se afasta. Volta a viver em seu apartamento parisiense e fica outra vez mais próxima do amigo Octave (Fabrice Luchini), em cuja companhia se dispõe a embarcar em novas aventuras amorosas. Essa é a deixa para que Rohmer indague sobre o que as mulheres realmente querem, uma pergunta ambiciosa para a qual ele não se preocupa em fornecer respostas absolutas.
Na concepção de Louise, essa distância de Remi vai fortalecer o relacionamento dos dois, mas a nuvem da instabilidade está sempre sobre a sua cabeça e, com isso, ela acaba se envolvendo com Bastien (Christian Vadim), um músico que conhece em uma festa à qual vai com Octave. Ao mesmo tempo, começa a desconfiar de uma possível traição do namorado oficial, e conta com a ajuda do amigo para investigar os passos de Remi e confirmar ou negar suas suspeitas. Calcado nesse jogo de encontros e desencontros, Noites de lua cheia vai se mostrando como mais um Rohmer típico, que analisa os hábitos burgueses e destila sua verver irônica sem jamais perder a elegância. À diferença de seus célebres companheiros de crítica da lendária Cahiers du Cinéma, que demonstraram vontade de reiventar a Sétima Arte e pensá-la com tons mais pulsantes (Jean-Luc Godard), letais (Claude Chabrol) ou romanceados (François Truffaut), só para citar os principais, Rohmer sempre exibiu preferência por um viés classicista, de rigor formal e ênfase na palavra, o que lhe trouxe uns quantos detratores ou esnobadores.
A crítica especializada aponta esse rigor como uma influência de Robert Bresson, realizador de longas como O batedor de carteiras (Pickpocket, 1959), rodado no ano em que Rohmer estreou como cineasta com O signo do leão (Le signe du lion, 1959). Em ambos, é notória uma predileção por um roteiro bem alinhavado e uma certa despreocupação com o desempenho dos intérpretes, criando personagens um tanto artificiais e, por vezes, até apáticos. Contudo, o efeito dessas características é benéfico, pois confere uma estranha verossimilhança aos homens e mulheres que desfilam na tela com suas inseguranças. Todos os dias, somos apresentados a pessoas reticentes, quando não somos nós mesmos os hesitantes e, por isso, travados e desconfortáveis, perdidos em um mundo de escolhas em que, tantas vezes, optar por uma alternativa é eliminar definitivamente todas as outras. Esse também é o caso de Louise: ela sofre de indecisão crônica justamente por saber que não se pode ter Remi e Bastien ao mesmo tempo, enquanto se consome por não saber mais se o namorado ainda está ao seu alcance.
O filme é um dos exemplares da série Comédias e Provérbios, rodados na década de 80, que pode ser considerada como o apogeu do sarcasmo rohmeriano e a exploração máxima do ordinário em tramas que nunca ultrapassam os 100 minutos de duração. Entretanto, esse tempo cronológico não tão extenso é dilatado em exposições agudas de sentimentos que quaisquer um de nós pode experimentar em maior ou menor grau, longe de qualquer hermetismo. A exemplo dos demais filmes da série, Noites de lua cheia traz um frescor intelectual que afasta a perspectiva tradicional que associa esse traço à poeira que recobre os materiais artísticos e transpira uma juventude que parece ausente de cineastas mais novos que ele à sua época ou em décadas posteriores. Suas regras estreitas de concepção fílmica, porém, apresentavam exceções discretas. Raramente, ele trabalhava mais de uma vez com o mesmo ator mas, aqui, dirigiu Luchini pela terceira vez consecutiva, dando-lhe um papel de coadjuvante que contribui para catalisar as emoções e confusões da protagonista. No fundo, Louise é rondada pela ideia da solidão, um fantasma para a maioria das pessoas, à qual ela combate debilmente. A metáfora do título é outro recurso eficiente: todos temos nossas noites de lua cheia, mas trata-se apenas de uma fase a ser suplantada por outras, em um ciclo de mudanças e repetições da ordem do pensamento e da ação.
8/10
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