Neblina e sombras, a dificuldade em olhar mais longe

Em mais um de seus diálogos com os gêneros e movimentos cinematográficos, Woody Allen engendrou Neblina e sombras (Shadows ang fog, 1991), que comprova outra vez sua capacidade de comentar os mesmos assuntos sem se tornar refém da repetição. A homenagem da vez é ao expressionismo alemão, que remete a filmes como Nosferatu (Nosferatu, eine Symphonie des Grauens, 1922) e M - O vampiro de Düsseldorf (M, 1931). Em uma pequena comunidade europeia, uma série de assassinatos por estrangulamento vem roubando o sossego dos moradores e fazendo a Polícia buscar meios de desvendar o criminoso. Para isso, entra em cena Kleinman (Allen), um homem pacato que, de uma hora para outra, vê-se recrutado para as investigações em torno do serial killer e incluído em um plano sobre o qual nunca sabe detalhes. Essa angústia de não saber como deve agir paira sobre o personagem o tempo todo, e o deixa completamente perdido em caminhadas noite adentro na localidade.

Os velhos temas do realizador aparecem aqui e ali, à medida que a narrativa prossegue. Allen volta a falar de moral, religião, culpa e a dificuldade em acolher a crença na existência de Deus, sintetizada em seu personagem. Durante a longa noite de percalços de sua busca forçada pelo assassino, ele é indagado mais de uma vez se acredita ou não na existência de um Criador divino de todas as coisas, e confessa que a ideia lhe parece absurda. Em paralelo, conhecemos Irmy (Mia Farrow), a namorada de um palhaço (John Malkovich) que se frustra por não ter conseguido arrancar risos da plateia daquela cidade, algo inadmissível para um ícone do bom humor como ele. É a deixa para o cineasta discorrer sobre a crise do artista, outra constante de sua obra. Como lidar com um ofício para o qual não se tem certeza de que haja talento? Esse questionamento também aparece em filmes como Interiores (Interiors, 1978), que traz a personagem de Diane Keaton à volta com a incerteza sobre sua capacidade como escritora.

Pouco tempo depois, os caminhos de Kleinman e Irmy se cruzam mas, antes que isso aconteça, ela passa algumas horas no bordel da cidade, já que não aceita a traição do namorado com uma das componentes de trupe (Madonna, em aparição relâmpago). Confundida com uma das prostitutas do local, ela sofre o assédio de Jack (John Cusack), um frequentador que se encanta com sua aura de certa inocência e insiste em desfrutar da sua companhia na cama. Ela recusa veementemente e se ofende com a proposta, sendo acudida pela dona do lugar (Kathy Bates), que lhe avisa que ela não é uma das moças a serviço ali. O argumento não o convence e ele vai aumentando sua oferta a Irmy, que começa a balançar diante da boa quantia em dinheiro, até que se rende à proposta. O episódio leva a refletir sobre até onde podem ir os princípios de uma pessoa quando entra em jogo uma certa soma de dividendos. A moral de Irmy, a princípio tão inflexível, dobra-se após certa insistência de Jack. Poucas horas bastam para que ele se satisfaça e, ao ouvir dela que está surpresa com sua atitude, em um surto de consciência, ele sugere que, talvez, só naquele momento Irmy tenha sido ela mesma, o que a deixa um tanto chocada.


A base para o roteiro de Neblina e sombras está em Death, conto escrito pelo próprio Allen, que faz parte de seu livro Sem plumas. O humor da história é bem mais contido que em suas obras anteriores, e o drama prevalece. A atmosfera sombria funciona perfeitamente e ainda serve de metáfora para a condição humana: existe sempre uma névoa que encobre o nosso olhar e limita a visão a uma determinada distância. Essa limitação nos deixa inseguros e possibilita uma inifinidade de elocubrações, algumas das quais transformamos em certezas, para que nos sintamos amparados em algo sólido. Entretanto, as circunstâncias, por vezes, dão conta de mostrar que muitas delas, quiçá todas, não são perenes, e novas convicções têm de ser formadas. Esse ciclo parece durar a vida inteira, e alguns acabam preferindo a resignação, declarando estarem certos apenas de que não têm certeza sobre nada. É o olhar do homem natural, dissociado de uma instância divina que o acolha e clarifique seus pensamentos. Há que se destacar, contudo, que Allen não transforma seu discurso de descrença em panfletarismo. Na vida pessoal, ele mesmo não crê em Deus, mas nunca se mostrou disposto a sabotar a crença de ninguém nEle.

Depois do encontro entre Kleinman e Irmy, o filme já está quase caminhando para o seu desfecho, sem que uma conclusão para o mistério dos assassinatos seja apontada. Pudera. Allen não é um cineasta de tantas respostas quantas perguntas, e jamais subestima a inteligência de seu público, permitindo leituras inferenciais e julgamentos individuais. Em suas conversas com Irmy, Kleinman não esconde suas dúvidas existenciais e a conclama a olhar as estrelas, um dos símbolos máximos da vastidão do Universo e dos seus mistérios tão altos. Trata-se da undécima colaboração entre ambos, que ainda eram casados na vida real à época do filme, pouco antes do escândalo que arruinou seu relacionamento. Os eventos de Neblina e sombras foram clicados magistralmente por Carlo Di Palma, com quem Allen trabalhou diversas vezes e aqui contribui decisivamente para a construção da atmosfera de nebulosidade que circunda o filme, um genuíno exemplar da capacidade mágica do diretor em conceber estudos sobre a agonia da condição humana com tonalidades e graus de ironia variados.

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