Amor e o sentimento desolador perante a finitude

Acusado por grande parte da crítica e do público de sádico e cruel, Michael Haneke parece ter convencido ambos os lados – também em parte – de que pode ser mais humano em Amor (Amour, 2012), filme pelo qual recebeu sua segunda Palma de Ouro em Cannes, apenas três anos depois de A fita branca (Das Weisse Band, 2009). O realizador austríaco voltou a filmar em francês – como já fizera em títulos como Caché (idem, 2005) – e trouxe novamente à tona duas lendas vivas do Cinema europeu: Jean-Louis Trintignant e Emmanuelle Riva. Os atores vetustos interpretam Georges e Anne, dois nomes recorrentes na filmes do cineasta. Musicistas octogenários, eles vivem confortavelmente em Paris, dividindo um amplo apartamento e a paixão pelas notas musicais, a afinidade mais explícita que cultivam após décadas de casamento. Eles gostam de ir a concertos e, em um deles, ficam encantados por um jovem talento que, anos atrás, havia sido aluno de Anne e hoje lhe devota gratidão e respeito. Não se vê a apresentação do rapaz, que encanta e comove com um solo de piano. Somos apenas a plateia diante da plateia, em meio à qual os protagonistas fazem sua primeira aparição.

Nos primeiros minutos de projeção, fica evidente o quando eles são um casal adorável e cúmplice, que prefere a reclusão a maior parte do tempo. Não se sabe se foi uma escolha ou uma imposição das circunstâncias, mas eles raramente são visitados e, normalmente, que vai vê-los é a filha Eva (Isabelle Huppert), mulher bem-sucedida e austera, mas capaz de singelas demonstrações de apego, carinho e preocupação com os pais. Haneke filma os instantes prosaicos do relacionamento de Georges e Anne, incluindo as pequenas gentilezas de um para o outro. Não são apenas dois amantes de longa data, mas companheiros leais para o gáudio e a vicissitude. Entendem-se por palavras, mas também por silêncios e olhares profundos. Um simples toque de um diz muito ao outro. A harmonia é notória e, ao que tudo indica, inquebrável. Entretanto, os ventos da adversidade começam a soprar sobre o cotidiano. Anne sofre um derrame cerebral e perde os movimentos do lado direito do corpo, tornando-se dependente do auxílio de Georges para as tarefas mais simples.

A partir de então, a luta do casal é por manter viva a sua dignidade, combalida após a debilidade enfrentada por Anne. Georges se mostra um guerreiro incansável, a despeito de sua condição física não tão privilegiada – o peso dos anos também lhe recai sobre o corpo – e não poupa esforços em direção ao bem estar da esposa. Ela, por sua vez, tem plena consciência do empenho que sua situação exige, e não abre mão da franqueza ao dizer que está cansada e vê nos olhos do marido a mesma sensação. A juventude de ambos se foi há muito, e encarar os desafios da maturidade é uma descoberta diária que eles vivenciam juntos, ao mesmo tempo em que não perdem de vista a certeza de que a finitude os ronda. Amor coloca em pauta essas questões através de longos planos-sequência, assinalados pelo rigor típico de Haneke, que contribuem para a atmosfera soturna e algo opressiva instaurada no apartamento dos protagonistas. Como o próprio título indica, o filme aborda o mais universal dos sentimentos, jamais pronunciado pelos personagens, apenas demonstrado. Por vezes, de modo inusitado, é bom que se diga.


As dificuldades aumentam depois que Anne sofre seu segundo derrame, perdendo de vez a sua autonomia e regredindo aos tempos da primeira infância, quando todos somos inteiramente dependentes de tutela. Os esforços de Georges aumentam proporcionalmente, mostrando o quão admirável é o carinho de um homem com sua esposa em uma situação limite como aquela. É de se questionar quantos teriam metade da dedicação que ele apresenta. Normalmente, são as mulheres que devotam cuidados aos seus maridos quando eles adoecem gravemente. Testemunhar o contrário, ainda que seja sob o viés fictício, não deixa de ser alentador. A bem da verdade, o casal vive uma dor crescente, que não se expressa pelo derramamento de lágrimas, mas pela consternação internalizada e um penoso trabalho de Georges em prol do conforto da esposa, estendida sobre a cama, indefesa, débil, à morte. O mérito maior de Amor provém das interpretações devastadoras – não há termo mais adequado para classificá-las – de Trintignant e Riva. Ambos estão monstruosos nas composições cheias de filigranas dos seus personagens, que transpiram agonia a cada ato (ou ausência dele).

Nas mãos de Haneke, a narrativa jamais incorre no melodrama ou no sentimentalismo barato. Pode-se acusá-lo de manipulador, é verdade, mas ele o faz com esmero e perícia, com uma história de força suficiente para tal. O vilão de Amor é o tempo, invisível e de efeitos tão perniciosos quanto os do vento. Como quaisquer pessoas, Georges e Anne sabem que não são eternos, e postergar a vida, a partir de certa altura, é uma utopia. A luta contra o tempo, cedo ou tarde, revela-se inglória para todos: ele sempre é o vencedor. Enquanto ainda pode, Georges usa todas as armas, e seu instinto de preservação chega às raias do radicalismo, como quando ele não admite que uma das enfermeiras que contratou para ajudá-lo a cuidar de Anne a penteie com um pouco mais de intensidade e a demite. Ele quer proteger a esposa de qualquer experiência que humilhe, degrade ou, ao menos, fira seus brios, eclipsados pela doença. Até que possa suportar. E sua resistência é longa, testada por vários dias extenuantes de dedicação integral. Nem mesmo Eva pode adentrar o mundo em que eles se fecharam, e no qual pretendem permanecer até que o fim se lhes mostre. Até que as forças se esvaiam e seja melhor sufocar toda dor. A finitude é o fardo deste corpo que todos carregamos. Contra ela, nenhum argumento ou esforço subsiste.

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