Uma interminável noite surreal em Depois de horas


Os eventos que se sucedem em Depois de horas (After hours, 1985) reúnem em si uma gama de variações inusitadas, que tornam o filme, no mínimo, uma surpresa quando se pensa em seu diretor: Martin Scorsese. Quando decidiu concebê-lo, o realizador já acumulava alguns retratos da violência na selva urbana capitaneados por tipos com uma forte queda para a briga, normalmente vividos por Robert DeNiro, como é o caso de Taxi driver (idem, 1976) e Touro indomável (Raging bull, 1980). Portanto, era um cineasta ao qual se podia associar a imagem de visceral e intenso. Ao apostar em uma toada mais parcimoniosa, Scorsese deu uma bela prova de versatilidade, tornando o filme em análise um dos exemplares inesperados de sua filmografia – anos mais tarde, ele surpreenderia de novo ao dirigir Kundun (idem, 1997). No centro da trama de Depois de horas, está Paul Hackett (Griffin Dune), um rapaz com uma vida simples que trabalha como editor de livros.

Ele estava vivendo mais um dia como outro qualquer, perfeitamente encaixado à sua rotina, mas, aos poucos, vai percebendo que a sua noite não deve terminar da mesma maneira que as outras. Sua série de desventuras começa a partir do momento em que ele observa e se interessa por uma jovem que está na mesa em frente à sua em um café que ele frequenta. Minutos mais tarde, ele se aproxima da garota, e descobre que ela se chama Marcy Franklin (Rosana Arquette), além de perceber logo o quanto ela é simpática. A conversa tem início a partir do livro que ela está lendo, e os dois logo se entusiasmam pela companhia um do outro, mas ela precisa ir embora e lhe deixa apenas o seu número de telefone para um possível futuro encontro. Cada vez mais interessado por Marcy, Paul decide ligar para ela quando chega em casa, e consegue marcar de revê-la naquela mesma noite. Ele ainda não sabe, mas as horas seguintes serão intermináveis, e voltar para casa são e salvo passará a ser o seu maior desafio.

Com base nessa premissa simples, Socrsese fez de Depois de horas o triunfo da comédia nonsense, na qual o riso deriva diretamente de situações absurdas, bizarras, pitorescas. Paul se encontra com tod a sorte de gente em seu percurso, e conhece vícios, virtudes, tiques e manias inesperados, com os quais tem de lidar da forma mais eficiente possível. Chegar ao apartamento de Marcy é a parte mais fácil de sua jornada, mas ela não está lá quando ele aparece e quem o atende é uma amiga da garota. Esse primeiro desencontro vai levar o protagonista a empreender uma busca pela jovem, da qual, mais adiante, ele acaba desistindo, e passa a querer apenas retornar para o conforto do seu lar e descansar para mais um dia de muito trabalho no escritório. O tempo inteiro, o filme causa estranheza, e consegue se equilibrar entre o surreal e o verossímil. Qualquer pessoa já teve um dia em que parece que todas as coisas resolveram acontecer de uma só vez, daqueles que, contando, ninguém acredita – principalmente se esse alguém for um chefe ao qual se deve justificar uma falta ou um atraso.


Também por isso, o filme consegue conquistar o seu público, além de oferecer uma bela cota de despretensão e um carisma notável de Dunne, com quem é possível se identificar no meio daquela noite de loucuras. Entre os vários fatos que surgem na sua tentativa de volta, estão uma forte chuva que o encharca, a falta de dinheiro para pegar o metrô, cuja passagem aumenta de repente e lhe surpreende, a desconfiança de vizinhos de um homem que o ajuda com dinheiro e uma garçonete insatisfeita com o seu trabalho que coloca na cabeça que ele é o homem capaz de romper com o seu tédio. Esses e outros personagens compõem uma fauna de tipos curiosos que habita as ruas e casas do Soho, que, na alta madrugada, são escuras e, por vezes ameaçadoras. E as situações que ele enfrenta são daquelas que, no momento em que surgem, causam medo, preocupação e desespero, mas, tempos depois, são relembradas com risos.

Mesmo entre a legião de fãs de Scorsese, Depois de horas não está entre seus filmes mais celebrados, exatamente pelo fato de que o cineasta alcançou reconhecimento e prestígio com suas abordagens de homens em fúria. Essa preterição acaba sendo injusta, pois o longa tem vários ótimos momentos, funcionando como um entretenimento divertido e ligeiro, daqueles a que se pode assistir na TV quando se está à procura de um bom passatempo. Certas vezes, bastam as histórias modestas, que incorporam elementos do cotidiano e convencem com sua simplicidade e objetividade. Para alguns, o filme também abre espaço para a crítica social, representada nos costumes de seus personagens, que traduzem toda uma lógica de consumismo e carência – sobretudo por Julie (Teri Garr), a tal garçonete. Também é possível enxergar ares allenianos nessa jornada ao mesmo tempo ordinária e incomum, pelo quê de homenagem a Nova York que ela carrega consigo – vide Manhattan (idem, 1979). É uma pena que Scorsese, com o tempo, tenha deixado de lado projetos como esse. Não seria nada mal se ele dirigisse outro desse naipe hoje em dia.

Comentários

  1. Já indo à contramão da maioria, embora admire a filmografia de Scorsese e seus filmes mais memoráveis envolvendo a máfia e violência a granel, "After Hours" é o meu segundo preferido do diretor, perdendo apenas para "Touro Indomável" mesmo. Assim como o também excelente "O Rei da Comédia", são projetos de tino mais autoral do diretor, comprovando seu talento e versatilidade. Fora que o filme é engraçadíssimo e bizarro, aproveitando-se do surreal para fazer uma crítica social pertinente aos costumes norte-americanos. Um grande filme que merecia ser mais conhecido.

    Abs!

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  2. Fantástico, Patrick. Sua escrita é um bálsamo. Como você escreve bem,cara. Não conhecia esse filme. Fiquei surpreso quando soube que era de Martin Scorsese. Nestes dias vi "Os Infiltrados" que é dele, também. Gosto desse diretor. E desde já "Depois de horas" já faz parte de minha lista. Um abraço...

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  3. Elton,
    concordamos com relação ao fato de que Depois de horas é um ótimo filme que merece mais atenção do público. Fico feliz pela nova visita e pelos comentários. Pretendo ver O rei da comédia em breve e espero gostar desse também.

    Maxwell,
    agradeço por ter passado por aqui e deixado mais um comentário tão lisonjeiro. É muito gratificante ter suas palavras registradas no blog. Fica mais essa indicação de filme para você conferir assim que puder.

    Abraços para os dois

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