O joelho de Claire, a sedução pelo simples toque


“Seduza-me ou eu te devoro”. O convite tentador parece ser emitido em infrassons diretamente aos ouvidos de Jerome, o protagonista de O joelho de Claire (Le genou de Claire, 1970), mais uma prova cabal do quanto Eric Rohmer (nascido Jean Maurice Schérer) é habilidoso na abordagem das confusões e anelos sentimentais de homens atordoados. Interpretado por Jean-Claude Brialy, o personagem é um diplomata que vai passar os últimos dias de suas férias de solteiro às margens do lago Annecy, um daqueles cenários idílicos e deslumbrantes de que os cineastas franceses dispõem para ambientar suas produções irresistíveis. Ali, ele reencontra Aurora (Aurora Cornu), uma antiga amiga dos tempos em que ele vivia no lugar. Essa amiga está morando temporariamente em um quarto na casa de uma mulher cujas duas filhas, de alguma maneira, terão envolvimento com Jerome.

Com base nesse pressuposto, Rohmer exercita novamente sua deliciosa veia autoral para construir um pequeno tratado das relações amorosas e do quanto as incertezas permeiam a existência, sobretudo quando se trata de interagir com o outro. Há sempre um argumento muito simples a ser trabalhado em seus filmes e, da lapidação de gangas brutas em forma de premissa, surgem reflexões agridoces pontuadas por uma verborragia difícil de encontrar tanto em seus contemporâneos quanto em realizadores de décadas seguintes, o que o reveste de uma singularidade atraente para aqueles de personalidade mais analítica. O tal convite anunciado anteriormente parece vir dos lábios de Claire, a personagem-título que embaralha a percepção de Jerome e o faz ansiar pelo simples gesto, pelo desejo do toque como fim em si mesmo: aquilo que basta para aplacar um impulso sexual sempre velado. O diplomata a conhece através de Aurora, já que ela é uma das filhas da tal senhora cujo quarto lhe foi alugado. Porém, Aurora incita Jerome a se envolver com Laura, a outra filha da senhora. Ele chega a ensaiar uma aproximação com a jovem, mas estaciona em algumas conversas sobre trivialidades e pequenos enigmas sentimentais.

Pulsa uma revolução interior em O joelho de Claire, ativada pela presença de um imbróglio de ordem sentimental que inebria o olhar do protagonista. Trata-se de uma construção recorrente em Rohmer, cujo apego ao discurso e às sutilezas do coração o torna uma espécie de estranho no ninho da Nouvelle Vague cada vez que se pensa em compará-lo a nomes como Jean-Luc Godard e François Truffaut, seus companheiros de movimento, embora este último guarde certas semelhanças, inclusive temáticas, com o diretor. Aliás, Brialy foi um dos atores mais requisitados do movimento, tendo estado em filme de ambos os cineastas e também de Claude Chabrol, outro nome de peso do grupo dos cinco críticos da Cahier du Cinéma. Rohmer filma à moda clássica, exibindo um rigor formal que torna suas produções inscritas em um tempo no qual os aparatos tecnológicos não haviam avançado o bastante para serem utilizados como bengalas para a narrativa.

Assim, O joelho de Claire acaba por ilustrar a limpidez com que o realizador passeia pelos seus temas e obsessões favoritos, sem recorrer a firulas no que tange ao estilo de filmar. Sua câmera quase estática permite o respirar de seus personagens, acompanhando-os com discrição e concedendo espaço para que eles repensem suas vidas e suas escolhas em meio às arapucas do coração. Jerome, de improviso, começa a balançar diante da iminência de seu casamento depois de conhecer Claire e, vivendo um amor algo espiritual com a jovem, isso passa a lhe bastar, interessando-lhe e atraindo-lhe muito mais do que a possibilidade de se circunscrever a um protocolo legal, cuja validade ele vai questionando discretamente. É um detalhe curioso da trama: apesar dos longos diálogos entre os personagens, nem sempre o que eles sentem e pensam está declarado pela palavra, mas por pequenos gestos. E aí também reside a beleza do cinema de Rohmer: ele não esgota seu discurso através da linguagem verbal, mas deixa algumas frestas para a inferência do olhar do espectador.


Com O joelho de Claire, o cineasta discute o fetiche, demonstrando o quanto o homem pode se apegar a símbolos e projetar desejos sobre eles, valendo-lhe muito mais a idealização e a dificuldade de concretizá-los do que a sua consumação a curto ou médio prazo. Será que Jerome, de fato, apaixona-se por Claire ou estaria ele envolvido pela sua beleza diáfana que suprime a lógica e inunda o olhar? Ao mesmo tempo, reina uma certa inocência na condução da narrativa. Jerome não chega a ser um cafajeste por se interessar por Claire, ainda que esteja às vésperas de seu casamento. Ele soa muito mais como um amante inábil que, por suas atitudes, parece não ter encontrado a mulher de sua vida na figura da noiva, que jamais aparece na história. Então, segue tateando o caminho do próprio coração, abrindo a guarda para se deixar influenciar pelo alto poder de atração de Claire. Paralelamente, vemos o dilema de Laura, que está envolvida com um rapaz, o imaturo Vincent (um jovem Fabrice Luchini), exemplar clássico de projeto de homem aprendiz de companheiro.

O ritmo do filme se assemelha ao de uma valsa lenta, conduzida por um talentoso dançarino que não deixa sua parceira de dança desamparada, sabendo exatamente de onde partir e aonde chegar, ainda que essa chegada possa significar a própria incerteza sobre o lugar a que se chegou, o que também é bastante comum em se tratando de um cineasta como Rohmer – Woody Allen é outro no qual esse aforismo encontra perfeito encaixe. O joelho de Claire flagra dessintonias e assimetrias sentimentais calcado em um jogo de palavras engenhoso, que pode ser atordoante para quem associa o cinema a explosões e correrias mirabolantes. O filme é como uma longa conversa sobre um tema que se presta a muitos olhares, sem que haja uma conclusão única para ele. Jerome é o clássico exemplo do sujeito bipartido, cuja consciência se funde pelo encontro com uma nova possibilidade de sentimento. É como o Jean-Louis (Jean-Louis Trintignant) de Minha noite com ela (Ma nuit chez Maud, 1969) ou o Gaspard (Melvil Poupaud) de Conto de verão (Conte d’été, 1996), ambos pertencentes à galeria de personagens concebidos pelo diretor, que escava neuroses masculinas e seus agravantes com um senso de humor sutil, daqueles tão nas entrelinhas que só um olhar mais aguçado pode detectar. Rohmer é o diretor do instante dilatado pela palavra, dos cordéis entretecidos pela inquietude dos sentimentos e do desejo do toque. Tudo o que há de mais prosaico se encontra em seu cinema.

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