A ternura de um olhar ou Em busca do ouro


Parte integrante obrigatória de qualquer antologia do cinema mudo e/ou dos anos 20, Em busca do ouro (The gold rush, 1925) é também mais uma das expressões do talento inigualável de Charles Chaplin. Exalando sensibilidade por todos os seus poros, o filme é um registro em preto e branco de alguns valores que sempre vale a pena cultivar temperados com uma dose salutar de humor, ao qual é praticamente impossível resistir. A narrativa está focada na figura de Lone Prospector (o próprio Chaplin, em seu clássico visual de Vagabundo), que vive a euforia da Corrida do Ouro de fins do século XIX. Todos estão loucos para encontrar seu quinhão do metal precioso e enriquecer subitamente, e ele acaba embarcando nessa jornada de procura pela prosperidade financeira. Desde então, o filme já fornece a deixa para uma apropriada crítica ao triunfo constante do capitalismo e a uma sociedade cujo naufrágio é derivado, em boa parte, pela disposição exacerbada quanto aos numerários.

O protagonista tenta ganhar a vida indo para o gélido Alasca, e lá descobre que a terrível filosofia desse sistema de governo está mais em voga do que nunca: Cada um por si e Deus por todos. Ou, como preferem alguns: Farinha pouca, meu pirão primeiro. Se ele pode apenas contar consigo mesmo, então é melhor não dar ouvidos a quem quer que seja. Mas, em seu coração e em sua alma benfazeja, ainda existe espaço para cultivar laços de amizade, e ele acaba se aproximando de Big Jim (Mark Swain), um sujeito espertalhão que não lhe retribui com sua contrapartida o apreço que o Vagabundo lhe dedica, o que só evidencia o quanto a pessoas cujo verbo preferido parece ser “dar”, conjugado no imperativo afirmativo. Os dois dividem o mesmo teto por um breve período de tempo, convivendo em uma choupana de aspecto deplorável, mas que, naquele momento, funciona como reduto da resistência da dupla, que vive brigas hilárias coreografadas de modo impecável pela direção coesa de Chaplin, extremamente pródigo em seu ofício.

Há várias cenas memoráveis ao longo de Em busca do ouro. Entre elas, a sequência na qual o protagonista, sem ter mais nada para comer, decide cozinhar uma de suas botas em um caldeirão. Depois que ela está “pronta”, ela a degusta como quem está diante de uma iguaria, e faz de seu cadarço um apetitoso espaguete. Permeada por um humor algo nonsense, a imagem diz muito sobre o quanto a modernidade muitas vezes nos oferece um cardápio de péssima qualidade – que, no fundo, nem serve como alimento – e o ingerimos tal qual alguém que saboreia um manjar. O momento em que ele improvisa uma dança com dois pãezinhos para as moças que vão visitá-lo no barraco é outro instante inesquecível do filme. Muitas tentativas de reproduzi-la, e até paródias, já foram feitas, mas ela permanece com sua aura de irreprodutibilidade e encanto sutil até os dias de hoje. Sem falar no desespero do Vagabundo e de Big Jim quando a casa em que eles estão vivendo está prestes a cair em um precipício e eles precisam lutar juntos pela própria sobrevivência, deixando rusgas e dissensões de lado ao menos transitoriamente.


Existem duas versões de Em busca do ouro. A primeira, muito mais famosa, é muda, como todos os outros filmes de seu tempo e transcorre ao longo de enxutíssimos 82 minutos. Em 1942, porém, Chaplin lançou uma versão sonora do filme, o que incluía uma trilha de agradáveis melodias, recurso que ele tinha passado a empregar com mais frequência em seus filmes a partir do início da década de 30, quando realizou o igualmente sensível Luzes da cidade (City lights, 1931), um tributo genial e inestimável à gentileza. Hoje em dia, há quem prefira a versão original do longa, mas o fato é que Chaplin consegue ser fascinante tanto com som quanto sem ele. E sua obra hoje respira com certa dificuldade para uma considerável parcela do público, que tem nele um diretor a ser descoberto e apreciado. De qualidade notável, seus filmes têm sempre muito a dizer: são comédias com algo mais ou dramas de grande potência, que refletem amplamente sobre os estado das coisas e, em algumas instâncias, sobre a confusa lógica humana.

A partir de certa altura, o filme muda quase totalmente de ares, quando o Vagabundo chega a um protótipo das casas noturnas contemporâneas e avista uma bela dançarina por quem logo arreia os quatro pneus. A personagem, a princípio, caberia à esposa do diretor na época, Lita Grey, mas ela se viu obrigada a abdicar do papel em decorrência de sua gravidez próxima às filmagens. Assim, Georgia acabou sendo vivida por Georgia Hale, cuja carreira no cinema duraria até alguns anos após Em busca do ouro, e que inclui títulos como a primeira adaptação para o celuloide de O grande Gatsby (The great Gatsby, 1926). Com ela, Chaplin filmou outra cena inesquecível do filme, um desastrado bailar que agradou tanto ao público da época que alguns cinemas a reexibiam logo após o término do filme, uma prova cabal de que um artista da delicadeza e do engenho dramático pode, sim, desfrutar do prestígio popular. Mesmo porque, uma postura aristocrata não caberia entre as singularidades chaplinianas dentrou ou fora das telas. E, no fim das contas, Em busca do ouro deixa perceber o quanto ele era hábil em oferecer encanto e crítica em uma só tacada. Em outras palavras, seu cinema abre espaço para denúncia, mas não perde a ternura do olhar.

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