Ecos de farsa e aparências trocadas em Potiche – Esposa troféu



Ao longo de sua filmografia, François Ozon vem demonstrando um profundo interesse pela desconstrução de certos subtemas que são comumente explorado pelo cinema de um modo geral. Suas subversões podem ser mais sutis ou mais declaradas, a depender do filme que se leva em consideração. Potiche – Esposa troféu (Potiche, 2010) é uma nova possibilidade de brincadeira proposta pelo diretor, e seu reencontro com a magnânima Catherine Deneuve depois de oito anos – ele a dirigiu em Oito mulheres (Huit femmes, 2002). Feliz reencontro, diga-se de passagem. A grande estrela dourada que reluz do início ao fim do longa-metragem é a atriz. Sob a persona de Suzanne Pujol, ela é o retrato da submissão: uma esposa compreensiva, que é capaz de perdoar os deslizes do marido Robert (Fabrice Luchini, ótimo) e exibir condescendência com as suas grosserias. Em resumo, uma mulher que se resigna ao posto de rainha do lar, não tendo necessidade nem mesmo de expressar uma opinião autônoma. Seu marido afirma, em certo momento, que a ela basta concordar com ele em tudo.

Essa espécie de sujeição acordada entre o casal chega a irritar em alguns instantes, mas é até cabível para o ano de 1977, tempo em que se situa o filme. Não por acaso, Suzanne recebe a alcunha de “potiche”, termo cuja tradução aparece no subtítulo em português, que não é, entretanto, a melhor possível. O vocábulo significa “bibelô” e, aplicado à personagem, sintetiza sua condição de objeto decorativo para Robert, que não faz a menor questão de saber o que a esposa realmente deseja. Todavia, o equilíbrio familiar se revela frágil quando Robert sofre um infarto e fica impossibilitado de administrar a fábrica de guarda-chuvas da qual é diretor, e que assumiu depois do falecimento do sogro. Aliás e a propósito, a escolha da tal fábrica de guarda-chuvas parece ser também uma homenagem a Deneuve, por remeter ao seu trabalho em Os guarda-chuvas do amor (Les parapluies de Cherbourg, 1964), um dos clássicos da carreira da atriz. O diálogo com o filme de Jacques Demy se dá dessa forma discreta, e é uma das referências interessantes do longa de Ozon.

Com o estado de incapacidade temporária de Robert, acaba restando a Suzanne a incumbência de levar o patrimônio da família adiante. Eis a grande virada do roteiro, que se valoriza por imprimir um teor de crítica social e de comédia de costumes à narrativa, partindo de um tema familiar para que o cineasta insira seu tom irônico. Potiche – Esposa troféu (o subtítulo é descartável) tem como grande atrativo a demonstração do quanto as aparências podem sugerir o que as pessoas não são de fato. Até mesmo no cartaz do filme, sugere-se uma troca de papéis entre os personagens, e o elenco de coadjuvantes também demonstra vivacidade e acrescenta bastante à trama. Jérémie Renier, por exemplo, sai-se muito bem na pele de Laurent, o único filho homem do casal. Seu comportamento ambíguo pode deixar o espectador com muitas dúvidas pairando sobre a cabeça, o que é mais um indicador de que aqui nada nem ninguém são exatamente o que parecem. O fato é que a necessidade faz surgir em Suzanne uma mulher decidida e encantadora, numa acepção diferente do bibelô que ela demonstrava ser antes. Na verdade, a protagonista renasce, assim como renasce o caso de amor do passado que ela manteve com Maurice Babin (Gérard Dépardieu), um deputado de idéias totalmente contrárias às de Robert, com quem já travou batalhas intensas. O filme ganha definitivamente o espectador quando começa a dobradinha entre os atores em cena. Não há mais espaço para qualquer outro personagem senão os seus. A intimidade entre ambos é nítida, e vem sendo talhada ao longo de parcerias recorrentes ao longo de suas carreiras. Eles já atuaram juntos outras sete vezes, em produções como O último metrô (Le dernier metró, 1980) e Os tempos que mudam (Les temps qui changent, 2004), para citar apenas dois exemplos de décadas distintas.



Em várias passagens, eles exalam carisma, e há uma sequência em especial que desperta o encanto no público: a que mostra os dois no famoso Badaboum, uma casa noturna onde Suzanne viveu grandes momentos no passado, também acompanhada de Maurice. Potiche – Esposa troféu também é irresistível no modo como é conduzido. Não há cenas desnecessárias aqui: todas estão perfeitamente encaixadas à narrativa e contribuem de alguma forma para seu andamento, evidenciando a adequação de Ozon a uma das regras basais do cinema. Sua direção de atores está verdadeiramente fantástica, e extrai desempenhos memoráveis de todos. Fazia tempo que Deneuve não tinha um papel tão grandioso nas mãos, que demonstrasse sua capacidade de colocar o filme no bolso. À medida que a personagem vai propondo soluções práticas para a empresa e vai conquistando a confiança dos funcionários habituados à austeridade extrema de Robert, o seu passado vai sendo desvendado. Com isso, o espectador vai chegando a conclusões inusitadas sobre a conduta de Suzanne. A essa altura, entretanto, ela já conseguiu a cumplicidade do público, que pode reagir às “revelações” do roteiro achando graça de tudo que está vendo.

Ozon exibe, com esse trabalho, o alcance de uma maturidade notável. Atualmente, ele detém a responsabilidade de ser um dos principais representantes do cinema francês, sendo tão profícuo e talentoso quanto Christophe Honoré, diretor de Canções de amor (Les chansons d’amour, 2005). Potiche – Esposa troféu também pode ser lido como uma bela homenagem a uma época de exageros e encantos, e esse é um outro aspecto interessante do filme. Durante seu transcorrer, a plateia praticamente esquece que está diante de um filme de época, já que as referências temporais são quase totalmente apagadas por Ozon. A não ser por um diálogo ou outro, a impressão que se tem é a de se estar diante de uma narrativa calcada na contemporaneidade. O realizador, aliás, adaptou aqui uma peça escrita por Pierre Barillet e Jean-Pierre Grédy, que já havia sido adaptada antes, mas para a TV francesa, em 1983. É inegável o tom frasesco do longa, que remete a uma estrutura teatral, exatamente a origem real da obra. E, mesmo que tenha escolhido abordar esse estilo, o diretor encontra formas de burlar sua estrutura em alguns momentos. Em sua definição básica, o farsesco é um gênero de teor dramático, mas que suscita situações com um quê de ridículo, e se baseia normalmente em um núcleo familiar. Longe de ser enciclopédica, essa breve observação auxilia a compreensão de que Ozon nos forneceu, em diálogo com uma produção pregressa, um retrato caricatural de certa classe social abastada e suas doces frivolidades.

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