Nossa música e as imagens de um artista em constante mutação

Entre as grandes lendas vivas do ambiente cinematográfico, Jean-Luc Godard pode, seguramente, figurar em uma das posições mais elevadas, feito alcançado depois de décadas de produção fílmica, calcado na revolução e na reinvenção constante de sua estética e de suas proposições. Especialmente nos últimos anos, cada lançamento de um filme seu é um grande acontecimento, como a passagem de um cometa pela órbita terrestre. Isso também se deve ao fato de o cineasta não dirigir com a frequência de outrora, concedendo ao público obras entre hiatos de mais de quatro anos. Em Nossa música (Notre musique, 2004), seu penúltimo filme lançado em circuito comercial brasileiro, Godard dialoga diretamente com a obra monumental de Dante Alighieri, A divina comédia, para tripartir 80 minutos de uma quase ausência de narrativa, percorrendo espaços, momentos e povos distintos. Já houve quem dissesse que existem muitos gêneros de filmes no cinema, e que Godard é um gênero à parte. Talvez haja um fundo de verdade nesse comentário, que pode ser confirmada ou desmentida com esse exemplar de seu estilo tão repleto de singularidades.



A grande obra da literatura italiana, que teve o mérito de ter sido escrita em uma variedade da língua que foi eleita como standard, é o ponto fundamental em que Nossa música se apoia. Como é do conhecimento compartilhado de muitos, A divina comédia é uma obra poética que se divide em três partes: inferno, purgatório e paraíso. Cada segmento desses apresenta 33 cantos, e ainda há o canto do prólogo, totalizando 100 cantos. Godard imprime uma estrutura muito semelhante ao seu filme, e confere especificidades ao que parece considerar cada um dos três ambientes que retrata. A ideia por trás da tripartição, ao menos em Dante, era a de fazer um trajeto rumo à elevação, partindo do lugar mais reles e deplorável para alcançar a glória e a magnitude. Godard não demonstra a mesma intenção, o que contribui para que ele crie um obra com identidade e estética muito próprias. O plano de abertura, por exemplo, oferece a captação de imagens horrendas, disformes, apresentando o desespero da guerra de um modo geral, com seus corpos esfacelados e a tristeza de quem está vendo a morte de perto. Logo nesse primeiro momento, Nossa música impacta, com seus tons cinzentos, com sua música imponente. Godard consegue fazer pulsar o coração do público, despertando sua comoção e sua ojeriza.

É claro, portanto, que ele compara a guerra ao inferno de Dante, compondo quadros de desolação e apresentando, desde então, uma característica que permeará a obra até o seu último minuto: a quase fusão entre ficcional e documental. O diretor não apresenta personagens, mas traz para a tela um apanhado de cenas e pessoas que vão vivendo suas vidas, como quem apenas espia os fatos como eles são, por mais problemática que seja essa definição de fato, ainda mais em tempos de excessivo relativismo em que a sociedade se encontra. No primeiro terço do filme, o domínio é o da colagem de cenas tenebrosas, que podem levar o espectador a um incômodo intenso com o que está sendo apresentado. Entretanto, a postura de Godard é a de quem está apenas fazendo constatações sobre o que está no mundo. Esse jogo dialético responde pela pungência do filme, que chega à sua segunda parte, um paralelo com o purgatório, trazendo cidades contemporâneas e seus habitantes exercendo o direito de ir e vir. Mas o diretor se detém a apresentar especificamente a cidade de Sarajevo, com sua população martirizada e suas mazelas escancaradas. A capital da Bósnia-Herzegovina é o miolo desse réquiem composto pelo maestro Godard, que viria a empregar a mesma estrutura tríptica em sua obra seguinte, o ainda mais revolucionário Film socialisme (idem, 2010).

É quando saem os aviões e os tanques para darem lugar a gente comum e suas tensões internas, suas complexidades e idiossincrasias que fazem delas tão humanas. Também estas são apresentadas de forma semelhante a de um painel, levando o espectador à condição de cúmplice de situações de horror e maldade, somadas às várias digressões feitas pelo diretor. São cenas que funcionam como pontadas lancinantes na plateia, que pode se sentir extremamente incomodada com a ausência de um eixo narrativo que sustente tudo aquilo que se vai desdobrando aqui e acolá. Infelizmente, boa parte do público está tão condicionada – como quem passou por um treinamento behaviorista – às histórias mastigadas que o cinema em escala industrial de uma certa Hollywood insiste em entregar semanalmente. Quem ultrapassar as barreiras autoimpostas a filmes que exercitam a consciência crítica será presenteado com um belo exemplar de observação reflexiva.



Nossa música, com sua sobreposição de imagens terrificantes, denuncia a capacidade assombrosa que o homem pode desenvolver de se habituar ao caos e à crueldade. Tomando emprestadas as palavras de um crítico, as cenas coletadas pelo diretor apontam uma ida na contramão da objetividade, que destrói a capacidade de ser emotivo. O território em que o cineasta entra é pantanoso, mas ele não demonstra dificuldades em sua caminhada, como os devaneios do viajante solitário que intitulam uma das reflexões filosóficas de Rousseau e sua tentativa de reconhecer o que era o homem quando este ainda tinha o estado de natureza. Por fim, chega-se ao terceiro reino apontado pelo diretor, mantendo seu diálogo iniciado anteriormente. Então, vê-se uma mulher, que já havia aparecido no purgatório, encontrar paz à beira de um rio, enquanto é vigiada, assim como outros tantos, por fuzileiros navais estadunidenses. É ou não uma grande provocação?

O fato é que o reino imagético apresentado por Godard, sob a forma de uma grande sinfonia, prescinde de palavras para ser validado ou qualificado. Com sua alegoria em forma de releitura, ele penetra a atmosfera do indizível, anarquizando o que ele mesmo já fez antes em termos de cinema. Com seu currículo dotado de títulos como Acossado (À bout de souffle, 1960) e O demônio das onze horas (Pierrot le fou, 1965), ele não precisa mais provar nada para ninguém, mas continuar exercendo sua verve contestadora como ninguém. Seus recortes dizem mais do que qualquer reunião de palavras, e atestam as várias camadas de valência de seu cinema sempre tão iconoclasta e subversivo. As estruturas e os prismas de convicção vão sendo abalados com a força de Nossa música, que, ainda assim, não exibe a pretensão de ser uma obra que mudará o mundo. Eis aí uma resignação parecida com a de Clarice Lispector, em uma das várias ocasiões em que se referiu ao seu ato de escrever. Ela afirmou, certa vez, que não escrevia com o propósito de alterar nada, mas que desejava mesmo, no fundo de sua alma, desabrochar. De alguma maneira, Godard se presta ao mesmo exercício: desdobrar seu inconformismo com o desconcerto do mundo e, reinterpretando uma obra que atende a seus anseios, exprimir essa eterna inquietude.

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