Crime ferpeito e seu desfile de bizarrices


A comédia pode reservar agradáveis surpresas, que levam ao entendimento que não é um gênero menor, como afirmavam certos pensadores da Antiguidade clássica (Aristóteles, por exemplo). Crime ferpeito (Crimen, ferpecto, 2004) reforça esse pensamento com sua trama mirabolante e verdadeiramente cômica. O filme de Álex de La Iglesia insufla o humor e se apropria do deboche com muita vitalidade ao narrar a trágica história (a depender do ponto de vista) de Rafael (Guillermo Toledo), um convencido vendedor de uma loja de departamentos da Madri contemporânea. Certo de que tem as mulheres aos seus pés, ele faz pouco caso do sexo feminino, agindo como um sedutor de quinta categoria. Entretanto, há alguém entre suas colegas de trabalho que o enxerga como um ótimo partido, mas a quem ele nunca olha. Ela atende pelo nome de Lourdes (Mónica Cervera), uma funcionária totalmente cafona que aguarda o dia em que será admirada pelo seu objeto de desejo. O tal crime do título, que se pressupõe desastrado pelo metaplasmo do adjetivo, ocorrerá nessa história, alterando o estado das coisas e virando a maré a favor da personagem.

Tudo no filme aponta para um olhar meticuloso e inusitado de Iglesia. O realizador espanhol tem na dupla de protagonistas atores muito talentosos, que conseguem dar a veracidade física e psicológica que seus personagens exigem. Os diálogos entre eles guardam muito de galhofa, e evidenciam a perspectiva de humor negro que foi adotada aqui. Crime ferpeito é um filme que brinca com aparências, mexe com certos preconceitos que se pode ter quando o assunto é se relacionar com outra pessoa, bem como questiona que limites podem ser ultrapassados se o que está em jogo é uma possibilidade de alçar voos mais altos. Sempre com uma lógica cômica que ampara o desenrolar dos fatos, deixando que os atores brilhem e dividam a cena harmonicamente. Ambos os personagens têm o mesmo grau de importância, e a plateia é brindada com um adorável jogo cênico que inclui certa dose de cinismo e destrambelhamento. Essa é uma característica da obra do diretor, que lança mão de artefatos bem-humorados para conduzir críticas ao comportamento humano, como fez, por exemplo, em seu longa anterior, A comunidade (La comunidad, 2000). No caso do filme em análise, sobra espaço para uma série de alvos no olhar cáustico diretor, além daqueles já comentados.

Guarnecido por uma divertida trilha sonora, um roteiro bem escrito e atores que oferecem ótimos desempenhos. Guillermo Toledo é a imagem do homem que não é dotado de grande beleza, mas se vale de seu charme de amante latino de quinta categoria para exercer sua egolatria e alcançar suas metas como vendedor. Mónica Cervera se utiliza de suas feições visualmente desfavoráveis para viver uma mulher que não mede esforços na busca pelo homem que deseja, arrastando-o para um universo de cafonice depois de um ato equivocado do colega de trabalho que tem de ser mantido em segredo. Esse evento é a grande chance de aproximação que o destino – ou seria a falta de talento de Rafael? – proporciona a ela. A essa altura, o desfile de bizarrices proposto por Iglesia chega ao seu apogeu, demonstrando que o diretor não abre mão de insights de insanidade para conduzir sua trama bem urdida.



Na verdade, Crime ferpeito se configura como um suspense de tintas cômicas, que diluem em parte seu impacto dramático como fonte de sustos, e redimensiona a noção de medo para dar lugar à de riso. O tom propositalmente espalhafatoso adotado pelo diretor remete à fase mais exagerada de Pedro Almodóvar, seu compatriota. É possível notar uma estética de cores berrantes e situações bizarras na colcha de retalhos costurada por Iglesia. Este não chega a ser exatamente um discípulo de Almodóvar, mas apresenta, com seu cinema, um caráter algo tributário à obra do diretor mais famoso da Espanha na atualidade.

Até mesmo na escalação de Mónica Cervera o diretor apresenta uma semelhança com Almodóvar. A atriz, de alguma maneira, lembra o biótipo exótico de Rossy de Palma, uma habitual colaboradora do cineasta. Elas são um dos toques de surrealismo que cada realizador tem nas mãos, e conquistam o espectador para além de suas aparências que soam estranhas para alguns. Cervera, inclusive, já se valeu de sua dubiedade física para viver um transexual em 20 centímetros (idem, 2005), outra comédia bizarra dirigida por Ramón Salazar. É quase impossível não se render à potência cômica da atriz, que transita entre as esferas do desejo, da adoração e do sadismo que exerce sobre Rafael a partir de sua personagem. Seu parceiro de cena também transpira o desespero de mudar de condição, “decaindo” ao ter de se sujeitar aos desmandos daquela que o acoberta condicionalmente. O longa demonstra a capacidade de Iglesia de apresentar um cinema autoral, que também dialoga com o grande público, resultando em um trabalho híbrido entre o alternativo e o popular, sem qualquer exaltação óbvia a um e demérito ao outro. Essa espécie de bipolaridade do filme é um de seus grandes atrativos, já que trazem uma aproximação do diretor com o público, sem que ele, contudo, perca a sua identidade para ser mais “palatável”.

A brincadeira presente no título do filme é uma homenagem do diretor ao personagem Obelix, das histórias em quadrinhos francesas. Quando cometia alguma trapalhada, o personagem tinha o hábito de dizer “ferpectamente”, endossando seu caráter estabanado. No caso do filme, a troca já é um indício de que algo não saíra exatamente como planejado, se é que havia sido verdadeiramente planejado. Um crime acaba levando a outro. Visto de outra maneira, é a comprovação exemplar de que uma mentira, para ser sustentada, necessita de outra e outra, para que a suposta veracidade da primeira seja corroborada. E na meia hora final da história, o diretor consegue prender ainda mais a atenção do público para um desfecho acachapante, pleno de desventuras e erros grotescos cometidos pelos personagens. Essas sequências são um bom exemplo do chavão “de tirar o fôlego”, e caracterizam a obra do diretor como singular e, ao mesmo tempo, de todos.

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