Constatações sobre a vida e a juventude ou Amantes constantes

A enxurrada de filmes embalados para ser despachados que aporta semanalmente foi extremamente perniciosa para a carreira de Amantes constantes (Les amants réguliers, 2005), um dos filmes recentes de Philippe Garrel. O longa-metragem passou praticamente despercebido pelo circuito comercial, tendo estado em cartaz concomitantemente com títulos como O grande truque (The prestige, 2006) e Os infiltrados (The departed, 2006), ambos de diretores de apelo popular autenticado. Além dessa concorrência descarada, ainda há que se considerar o fato de o filme ter três horas de duração, o que afugente boa parte das plateias, e a condução de uma narrativa em que os tempos mortos são largamente empregados. É lamentável, entretanto, que esses detalhes revistam o filme de uma espécie de campo magnético de repulsão, pois se trata de uma das obras mais belas de seu tempo e de seu país.



O diretor é um veterano cujos trabalhos não haviam visto a escuridão das salas de cinema até aqui. Philippe Garrel está na ativa desde o alvorecer dos anos 60, e seu primeiro filme, Les enfants désaccordés (1964) já trazia seu nome nos créditos tanto como cineasta quanto como roteirista. Ele também exerce as funções de fotógrafo, editor e produtor, enriquecendo seus trabalhos com uma aura de verdadeira obra de arte, a aura de que Walter Benjamin trata em seu texto sobre a reprodutibilidade dos trabalhos artísticos. Amantes constantes é de uma beleza estonteante, e ela surge de uma certa improvisação dos fatos da vida que estão ali expostos. É o resultado de um acúmulo de experiência alcançado pelo realizador francês, que também já foi premiado diversas vezes em mostras internacionais. O júri do festival de Veneza lhe tem especial apreço, já tendo-o homenageado várias vezes, com prêmios como o Leão de Prata por J’entends plus le guitarre (1991). Amantes constantes também foi contemplado, recebendo o Leão de Prata de melhor diretor em 2005, ano em que o grande vencedor foi O segredo de Brokeback Mountain (Brokeback Mountain, 2005).


Quanto ao filme, seu fio condutor são os dias anteriores e subsequentes às manifestações legendárias de maio de 68, inscritas para sempre na História como ícones de uma geração rebelde. Então, Garrel começa a sua mescla de apatia e ímpeto, guiadoras de sua jornada longa rumo à observação paciente das atitudes (ou da falta delas) nas vidas de um grupo de jovens. O principal deles é François (Louis Garrel, filho do diretor), que se apaixona pela intrigante Lilie (Clotilde Hesme, de uma beleza estupefaciente) ao ser apresentado a ela por um amigo em comum dos dois. Bastam esses dois elementos no argumento para que o diretor lance o público em uma interessante caminhada, sempre amparada pela lentidão, nas vidas daqueles rapazes e moças. A câmera capta a imprecisão da vida em instantes de lancinância pulsante, e fazem refletir sobre a urgência de se associar a uma ideologia e a se posicionar diante do mundo e do outro. Há uma névoa misteriosa em Amantes constantes que desperta o desejo de perseguição no espectador enquanto o filme se vai desenrolando, explicitada nas atitudes ambíguas tomadas pelos personagens em alguns momentos. O eixo temático desse filme remete quase imediatamente a Os sonhadores (The dreamers, 2003), um dos mais belos exemplos de uso do discurso metalinguístico e de homenagem ao cinema que já se viu. Entretanto, cada um deles segue por veredas distintas, comprovando a possibilidade de diferentes olhares para um mesmo fato.

Chama bastante a atenção a fotografia de Amantes constantes, assinada pelo talentosíssimo William Lubitchansky. A capacidade de encantar e impressionar do filme se deve muito a esse seu aspecto. A imagem capturada por sua câmera se transfigura em beleza, e reafirmam a escolha de Philippe Garrel pelo preto e branco, que ele tornaria a utilizar em A fronteira da alvorada (La frontière de l’aube, 2008). Essa opção pela ausência de uma paleta colorida confere a cada sequência um notório aspecto de antológica, e reforçam a validade da tese que defende o cinema do diretor como um espaço para a presença e a permanência do elemento fantástico. Ele gosta de colocar pitadas de surrealismo em suas narrativas, e aqui não deixa de fazê-lo, com muito mais discrição que na obra seguinte. São várias as passagens em que a bela fotografia demonstra seu charme, enredando o espectador para a atmosfera irresistível do filme, que discute, com sua aparente despretensão, o peso das decisões, especialmente quando elas envolvem escapismo e imobilidade. Amantes constantes fala sobre ideais esfacelados, sobre condutas de dissidentes e sobre a alienação voluntária de muitos jovens naquele meio, advinda de muitas decepções com o estado das coisas. Veem-se desencontros, desencantos, desentendimentos, desconexões sucedendo umas após as outras.



Quando se compara a abordagem feita por Philippe Garrel à vida, não se está fazendo uma mera tentativa de construção de símile. De fato, a aproximação do cinema praticado pelo diretor aqui é tamanha que entram em cena inclusive os momentos mais banais do cotidiano, como um cochilo na poltrona ou uma conversa longa sobre convicções pessoais ou desempenhos nos enlaces amorosos. Estão ali retratados os momentos solenes e sublimes da existências, mas também suas passagens mais tediosas e desestimulantes, deixando de lado qualquer didatismo que sua condução pudesse assumir. Não há tomadas explícitas de posicionamento em Amantes constantes, mas constatações sobre a vida e a juventude, oriundas de um grande espírito contemplativo. Talvez por isso o filme não seja tão palatável, mas é factual a observação de que ele seja capaz de produzir calor com sua aura inebriante. Aqui também está a primeira parceria entre Louis Garrel e Clotilde Hesme, uma dupla que seria reeditada pouquíssimo tempo depois em Canções de amor (Les chansons d’amour, 2005), o outro filme pelo qual os dois são muito conhecidos. A simbiose dramática entre ambos é maravilhosa, e o amor que nasce entre seus personagens, inicialmente avassalador, dilui-se com a decisão da jovem de deixar a França pelos Estados Unidos em busca de ascensão profissional. Brada no peito daqueles jovens uma necessidade premente de colocação no mundo, o que transforma os sentimentos mais puros e elevados em gritos surdos de instâncias em extinção.

Como se vê, o filme está alicerçado em uma complexidade que se encontra na própria vida. Sua extensa duração acaba por abarcar o componente de sobejante que está impresso na existência, que não a exime de ser transitória e urgente em sua necessidade de ser vivida. Por outro lado, a simplicidade de Amantes constantes é nítida. Philippe Garrel trata de amor e liberdade, dois sentimentos que não podem ser transcritos sob a forma de vocábulos, e traz personagens cujas histórias são menores do que a História. Onde está a revolução tão propalada por aqueles mancebos intempestivos e intrépidos. Até quando os ideais abstratos podem permanecer sem sucumbir aos chamados da vida prática, que cobra seu ônus em tantos momentos? O dinheiro, o poder, o amor? As escolhas estão ali, sendo feitas o tempo todo, e, nesse emaranhado de possibilidades, alguns caminhos são irreversíveis. E o que dizer da trilha sonora estonteante do filme? Uma das mais belas músicas que atravessa a narrativa é La chanson des vieux amants, que coroa de desilusão o romance truncado de François – o mesmo nome do personagem de Garrel em A fronteira da alvorada e Lilie. A letra e a melodia são de uma verdade e uma dor aguda, de que são exemplos perfeitos alguns versos, em tradução livre, que dizem: E quanto mais os dias passam, mais aumenta o nosso tormento, Mas será que a paz não é a pior armadilha Para os que se amam? A tradução da inquietude e da completa incerteza sobre tudo está sintetizada nesse fragmento de canção, a que se podem associar as palavras belíssimas de Cruz e Sousa sobre a indolência que se pode viver no amor, de que são testemunhas corpóreas os protagonistas dessa história tão grandiosa como a própria vida: Nebulosas de sons e de queixumes / Vibrado coração de ânsia esquisita / E de gritos felinos de ciúmes! Sentimento de falta de sentido e de vontade, ela está ali tão presente. Oh! languidez, languidez infinita!

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