Era uma vez em Nova York, o amor e o perdão em tons acinzentados

Os céus plúmbeos de Nova York dão o tom de Era uma vez em Nova York (The immigrant, 2013), mais um trabalho lapidar assinado por James Gray. Realizador de pérolas incrustadas em gêneros esgarçados como Os donos da noite (We own the night, 2007) e Amantes (Two lovers, 2008), ele volta a filmar em sua cidade natal e recruta, pela quarta vez, Joaquin Phoenix para o elenco. Dessa vez, porém, o protagonismo não cabe a ele, mas sim a Marion Cotillard. É dela a primeira cena do filme, na qual conhecemos sua personagem, Ewa Cybulski. Nascida na Polônia, ela vai para os Estados Unidos na companhia da irmã, que fica retida no posto de imigração devido à suspeita de tuberculose, apesar de suas tentativas de disfarçá-la. Não tarda para que Ewa descubra que a terra das oportunidades que estava em seu horizonte de expectativas é uma utopia.  

Suas dificuldades são atenuadas graças ao auxílio de Bruno (Phoenix), que já está no país há alguns anos e consegue se deslocar por espaços sociais distintos com traquejo e desenvolve um súbito afeto por ela assim que a vê em apuros. Entretanto, o que essa figura carismática tem a oferecer está muito longe dos planos e intenções de Ewa, que se vê transformada em atração de um cabaré, ainda que destoe completamente daquele cenário lúgubre. Seus esforços passam a ser em direção a uma estabilidade financeira e ao resgate da irmã, que ficou sob tratamento médico. Ao mesmo tempo, seu relacionamento com Bruno vai evoluindo e, para completar o que se insinua e, a posteriori, se confirma como um triângulo amoroso, entra em cena Orlando (Jeremy Renner).

O mágico de porte elegante não fica atrás de Bruno no quesito carisma, mas tem outros meios de cativar o coração de Ewa, surpreendendo-a com pequenas gentilezas. A imigrante se revela, portanto, como um filme tradicional sobre a cisão de uma protagonista entre dois caminhos. Nesse sentido, vale destacar que Gray não está preocupado em inventar a roda. O diretor investe em um terreno conhecido, a exemplo de suas obras precedentes, mas, o que poderia soar como uma insistência em permanecer numa zona de conforto se mostra como uma reafirmação de seu domínio sobre a técnica da filmagem e na condução de um roteiro pródigo em reflexões morais. Estamos diante de um cineasta à moda antiga, que dialoga com a tragédia em seu componente adjetivo, usado para se referir a enredos de clímax triste.


Em sua passagem pela 66ª edição do Festival de Cannes, o longa teve uma recepção morna e injusta. A verdade é que, desde a sua estreia, Gray divide opiniões na Croisette, apesar de ser habitué da mostra francesa: Era uma vez em Nova York é o quinto filme de sua carreira e o quarto a ter recebido indicação à Palma de Ouro. Para alguns, trata-se de um farsante, enquanto outros abraçam o seu estilo operístico de filmagem e escrita, rendendo-lhe comentários elogiosos. Esta segunda ala, que inclui tanto críticos quanto espectadores, parece a mais sensata, por assim dizer. Afinal de contas, não faltam virtudes em seu modus operandi e este quinto filme vem para confirmar essa tese nem tão facilmente refutável. O curioso é que, sobretudo entre os portugueses, o longa foi visto como o seu pior. Aliás, na Terrinha, ele foi batizado simplesmente como A imigrante, no feminino, um raro caso em que os gajos foram mais felizes na tradução, já que o filme é muito mais de Cotillard do que de Phoenix.

Por falar em Cotillard, há que se reconhecer o seu empenho na construção de Ewa, que inclui vários diálogos em polonês legítimo, que a atriz teve de aprender para conferir ainda mais veracidade à imigrante. Segundo a própria, esse foi o seu grande desafio, já que a língua - de grande incidência consonantal - exige uma impostação de voz distinta do inglês e do seu francês materno. Quanto à sua escalação, Gray afirmou que ela não se deveu a nenhum trabalho anterior seu, mas a seu rosto que o fazia lembrar Renée Falconetti em A paixão de Joana d'Arc (La passion de Jeanne d'Arc, 1928). Um elogio e tanto, é verdade, mas fica difícil aceitar que ele não a tenha visto em interpretações formidáveis como as de Piaf - Um hino ao amor (La môme, 2007), pelo qual foi oscarizada, e Ferrugem e osso (Rust and bones, 2012). Talvez, a essa altura, o cineasta já tenha corrigido sua falha. 

Por sua vez, Phoenix acrescenta outra grande desempenho à sua carreira, e elogiá-lo é chover no molhado. Em cada gesto, olhar e entonação, ele ratifica a moral ambígua de seu Bruno, capaz de atos de grande altruísmo e, na cena seguinte, de uma conduta deliberadamente egoísta. Imprensado entre ambos, está Renner, que mostra talento no pouco tempo em que aparece em cena, fazendo-se lembrar como o vértice mais suscetível do triângulo e respondendo pelo apogeu dramático da narrativa. A imigrante, em seu conjunto, é um filme sobre esperança, amor e perdão, atos e sentimentos universais e desejáveis, trazidos à tona em um discurso apologético e esplendidamente fotografado. Não se equipara à obra-prima que é Amantes, mas estabelece um elo coesivo com sua filmografia até aqui.

8.5/10

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