Eles não usam black-tie, uma crônica urbana do proletariado

Aos espectadores que insistem em dizer que o Cinema brasileiro não oferece bons filmes, sempre haverá exemplares que contradizem essa afirmativa. Para qualquer década que se olhe, é possível encontrar obras de grandes diretores, que deixam suas contribuições para que se enxergue uma geografia cinematográfica tipicamente nacional. Assinado por Leon Hirszman, Eles não usam black-tie (idem, 1981) emerge como um desses exemplares. Narrando a história de uma família de classe média-baixa, o longa é uma crônica urbana de momentos simples e a prova de que as diferenças de perspectiva são fontes fundamentais de conflitos internos. Tudo gira em torno de Tião (Carlos Alberto Riccelli), operário de uma fábrica cujos donos não vem atendendo às reinvidicações de seus trabalhadores. Otávio (Gianfrancesco Guarnieri), seu pai, também tem um emprego ali, e está certo de que a única maneira de garantir os direitos de todos é iniciando uma greve, que ganha a adesão de vários outros operários.  

Paralelamente, Tião descobre que sua namorada, Maria (Bete Mendes), está esperando um filho seu, e teme perder o emprego se aderir ao movimento grevista. Sua escolha de continuar trabalhando acarreta um desequilíbrio em casa, já que o pai o considera um traidor. Está formado o nó narrativo de Eles não usam black-tie, que leva ao Cinema o espetáculo teatral homônimo, de autoria de Guarnieri. O filme todo é permeado por situações prosaicas e por uma economia de ambientes que evoca as origens de seu texto, comprovando que a simplicidade está longe de ser um demérito no universo artístico. As emoções florescem com viço e naturalidade ao longo dos fotogramas clicados por Lauro Escorel, um acumulador de prêmio em sua função, belamente desempenhada aqui. Por sua temática e sua construção, o longa deu continuidade tardia a uma safra de bons filmes sobre a realidade brasileira realizados na década de 60: Noite vazia (idem, 1961), de Walter Hugo Khouri, São Paulo S.A. (idem, 1965), de Luiz Sérgio Person, e Copacabana me engana (idem, 1968), de Antonio Carlos da Fontoura.

No elenco, está outro dos trunfos da produção. Riccelli defende muito bem seu protagonista e, apesar de sua estampa de galã, vai além dela e interpreta um homem absolutamente comum, cindido por suas decisões e arcando com as consequências de seus atos. As passagens mais marcantes têm sua presença em cena e envolvem os doloridos embates com o pai. Hirszman apresenta o antes e o depois da greve no que tange ao relacionamento dos dois. De parceiros para todas as horas, eles passam a dois representantes de correntes de pensamento distintas que se enfrentam na mesa do jantar, e quebram o clima de harmonia e concórdia que pairava sobre a família até então. A escolha de Tião reflete também em seu namoro com Maria. Se antes estavam de casamento marcado e felizes com os planos para um futuro próximo, agora a ideia já não soa bem para ela, também uma funcionária da fábrica. É curioso ver a atriz, hoje uma veterana da televisão, bem mais jovem e encarnando uma personagem de sensualidade brejeira, capaz de se despir na frente do irmão adolescente com quem divide o quarto e está naquela fase de descoberta sexual.


Os demais coadjuvantes não ficam atrás no quesito talento. A química entre Guarnieri e Montenegro é flagrante, auxiliada pelos vários anos de amizade fora do set. Ele tomou para si um papel de nuances. Por vezes, é um pai dócil e compreensivo diante da iminência de uma nova configuração da família. Em outros momentos, assume uma postura intransigente diante da discordância de Tião em fazer parte do movimento grevista. Essa oscilação de atitudes não poderia ser mais humana. Ela, carinhosamente conhecida pelos brasileiros como Fernandona, prova mais uma entre tantas vezes porque merece o título de uma das maiores atrizes do país, senão a maior, única representante nacional a ser indicada ao Oscar. Sua entrada em cena na passagem em que Tião conta ao pai que vai se casar com Maria é triunfal e, ao mesmo tempo, discreta. Quando nos damos conta, ela simplesmente está ali, reagindo à notícia e exercendo sua função de matriarca que coloca todos em seus devidos lugares. Décadas mais tarde, o público de televisão teve a chance de observar que os dois continuavam muito amigos, quando contracenaram em uma novela.

A questão trabalhista costuma ser a mais destacada em Eles não usam black-tie, o que não é sem motivo. Afinal, é a partir dela que se desenha a zona de conflito paterno e filial. O momento histórico brasileiro em que o filme foi concebido também era propício para reflexões de ordem política. Um ano antes, havia sido fundado o Partido dos Trabalhadores, cuja síntese é a figura de Luiz Inácio Lula da Silva, que chegou à presidência após inúmeras tentativas, e conseguiu instaurar uma continuidade petista em uma das mais importantes esferas do poder republicano, deixando uma espécie de discípula em seu lugar quando do fime de seu mandato. Otávio se identifica com a proposta de uma nova classe operária, enquanto Tião só quer garantir o sustento do filho que está a caminho. Porém, o rapaz parece sozinho em sua escolha dentro de uma camada social ávida de mudança. Para além de todos esses tópicos, entretanto, trata-se de um filme sobre a construção do pensamento individual, bem como das consequências que dela advêm. E, nesse sentido, Hirszman se apropriou bem de um material previamente elaborado para entregar uma ilustração do que essa verdade pode significar.

8/10

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