O empolgante jogo dialético de Cópia fiel

Por ocasião do aniversário de 50 anos de Juliette Binoche, completados hoje, republico minha crítica para este que é o meu filme favorito com ela. O texto foi escrito originalmente quando ele estava entrando em cartaz nos cinemas do Rio de Janeiro.


Com um cinema costumeiramente atrelado a questões orientais, o iraniano Abbas Kiarostami não está, necessariamente, circunscrito como realizador ao seu país de origem. Esse septuagenário nascido em junho de 1940 gosta de brincar com os dispositivos que envolvem a representação, e de lançar ideias provocativas a esse respeito. Além disso, também já se dedicou a traçar retratos precisos da sociedade em que se insere, mas nunca deixando o seu modo de filmar soar fixo nesse espaço. E treze anos depois de ter sido premiado com a Palma de Ouro em Cannes por Gosto de cereja (Ta’m e guilass, 1997), em que abordava uma trama de tentativa de suicídio, ele vem impávido com mais um  trabalho, o sensacional Cópia fiel (Copie conforme, 2010). 

O diretor se aproxima, com esse filme, de seu Close-up (Nema-ye Nazdik, 1990), em que também buscava uma aproximação discreta entre o real e o ficcional, ao trazer a história de um rapaz que se passava pelo diretor Mohsen Makhmalbaf, até o dia em que sua farsa foi descoberta. Kiarostami foi autorizado a filmar o julgamento do jovem, e buscou levar a cabo sua proposta de fundir aqueles dois polos aparentemente antagônicos citados acima. Cópia fiel nos apresenta uma narrativa sobre um escritor que acaba de lançar um livro cujo título é o mesmo do filme em questão. Em sua obra, ele defende o valor da cópia na arte, e polemiza ao postular que, no universo artístico, o plágio é recorrente e necessário. O filme começa com os créditos sendo exibidos pacientemente na tela, tendo ao fundo o lugar onde James Miller (William Shimell), o escritor, proferirá uma palestra em que comenta a respeito de seu trabalho.

O cenário no qual ele é levado a debater sobre as questões que levanta em seu livro é uma pequena cidade situada na Toscana, região da Itália cujo dialeto foi eleito para ser a língua italiana standard. Logo nesse começo, James é instado a explicitar com mais força o que o leva a pensar positivamente acerca da cópia na arte, e inicia uma discussão que vai permear todo o filme. Na plateia que assiste a ele, está uma mulher exuberante (Juliette Binoche) que se interessa muito pelo teor do texto do autor, mas que tem de sair dali rapidamente por conta do pedido insistente de seu filho para que eles vão procurar um lugar para comer. Uma vez tendo saído dali, ela vai travar um diálogo franco e, por vezes, divertido com o garoto. Nessas duas primeiras sequências, já se pode perceber que o diálogo é a grande fonte de espetáculo de Cópia fiel, que evoluirá paulatinamente para uma intensa sessão de análise por meio da palavra.

James acaba por se aproximar daquela mulher, que jamais é nomeada, o que só reforça a aura de mistério que se constrói em torno dela. Depois de se aproximarem, eles darão início a um intrincado jogo de aparência x essência que acaba por fundir a compreensão do espectador mais atento e exegético. A princípio, pensa-se que o relacionamento entre o escritor e aquela mulher, que é dona, justamente, de uma galeria de arte, seja de amizade ou, no máximo, de uma conquista. Mas logo eles desenvolvem uma astuta conversa em que parecem dar vida a personagens, assumindo personas distintas daquelas que demonstraram inicialmente. Ela convida James para um passeio pela cidade que ele está visitando, e é nesse passeio aparentemente inofensivo que os diálogos incríveis são travados entre eles. Cabe ressaltar aqui o talento incontestável de Juliette Binoche como intérprete, que reafirma seu prestígio entre os diretores franceses e sua posição como uma das melhores de sua geração. Ela é a encarnação da beleza e da intensidade dramática, e seu trabalho impecável lhe deu a Palma de Ouro de melhor em atriz no festival de Cannes de 2010. A atriz transita muito bem entre o inglês, o francês e até no italiano, trocando de idioma cada vez que troca de interlocutor. O primeiro, ela usa quando conversa com James, o segundo, quando fala ao telefone, e o terceiro, quando se comunica com a dona de um café no qual ela e James param durante o passeio.


Kiarostami parte de uma premissa ampla e rica em possibilidades de análise para depois afunilá-la no jogo dialético que se estabelece entre “ela”, a personagem sem nome, e James. Logo depois que saem do café em que ele fala longamente ao telefone, o tratamento entre os dois se modifica inesperadamente. No tempo em que eles estavam naquela pausa, a senhora que lhes serve acredita que eles são casados, e começa a comentar sobre as agruras por que pode passar um casamento. A dona da galeria de arte não se preocupa em desfazer o mal-entendido (?), e ouve os conselhos “sábios” daquela mulher a respeito da vida a dois, enquanto James permanece conectado ao celular do lado de fora. A modificação no diálogo dos dois se dá, aparentemente, por conta desse mal-entendido da dona do café. Eles passam a uma discussão da relação, comportando-se como um casal que joga no ventilador todas as suas incongruências, como quem as guardava em uma gaveta que já não mais as comportava.

Essa é a grande virada do roteiro de Kiarostami, que fez dessa a sua primeira incursão pelo cinema dalém das fronteiras de seu país, no sentido de local de filmagem. Ele também convidou uma atriz conhecida para o papel principal, algo que não costuma fazer. Por razões já comentadas, felizmente ele rompeu com essa “regra”. Alguns críticos afirmaram que Cópia fiel contém a mais longa discussão de relação do cinema, o que não deixa de ser uma verdade. Ela e James falam, falam e falam, expondo suas personalidades difíceis e fascinantes, gerando um sentimento de incerteza que não abandona mais o espectador até ao final da sessão. O cineasta remove o chão que se havia solidificado sobre o público no começo do filme, e transmuta a discussão sobre ser certo ou não copiar em um longo percurso pela consonância que existe ente mentira e verdade. A questão que se levanta é: eles estão fingindo ser o que não são quando se comportam como um casal ou são casados que, de início, estavam fingindo ser desconhecidos?

Com essa dúvida instalada no público, o realizador oferece uma obra que se abre em inúmeras janelas e portas que se desdobram em outras mil possibilidades, fazendo valer o cinema como um veículo de reflexão sobre a condição do artista e sobre as máscaras que usamos cotidianamente. Esse é um filme para se acompanhar com olhos bem atentos, esquadrinhando cada minuto transcorrido, a fim de formular uma perspectiva individual a seu respeito. Por falar em olhos, Cópia fiel conta com uma fotografia deslumbrante, que matiza a policromia do ambiente idílico em que se passa, e é um trabalho de esteta realizado por Luca Bigazzi. A direção de arte também é sublime, e é assinada por Ludovica Ferrario, que traz para as cenas um apuro visual que contribui muito para atmosfera inebriante que cerca o filme. Bigazzi é um colaborador recorrente de Silvio Soldini, com quem já trabalhou no famoso Pão e tulipas (Pane e tulipani, 1999) e em Queimando ao vento (Brucio nel vento, 2002). Ele também assinou a fotografia de A estrela imaginária (La stella che non c’è, 2006), filme de Gianni Amelio que nunca teve chance no circuito comercial carioca, tendo sido lançado diretamente em DVD. Ferrario, por sua vez, também já trabalhou com Amelio, quando foi responsável pela direção de arte de As chaves de casa (Le chiavi di casa, 2004), além de já ter sido colaboradora de Nanni Moretti em O crocodilo (Il caimano, 2006).

Por meio de Cópia fiel, o cinema contemporâneo ganha um reforço e tanto no time de longas-metragens que esmiúçam os interstícios do constante mascaramento que atravessa a condição humana. Certamente, poderá se prestar em um futuro próximo a análises acadêmicas no âmbito filosófico e literário. Essa obra monumental se soma a títulos como Sinédoque, Nova York (Synecdoch, New York, 2008), que também investiga as potencialidades da encenação por meio de uma narrativa que caminha para o terreno do insólito. À medida que vai diluindo nossas certezas sobre a dupla de atores – tanto Juliette Binoche e William Shimell quanto “ela” e James – Kiarostami demonstra que, mais do que preocupado em provar uma tese que tomou para si, ele está interessado em jogar com as possibilidades de leitura decorrentes da interpretação (com ou sem aspas?) cheia de vitalidade desses dois, lançando o público numa espécie de mise em abîme (jogo de efeito especular em que uma imagem está contida na outra e, assim, infinitamente).

10/10

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