A identidade construída pela memória em Only yesterday
.jpg)
Um certo dia, decide viajar para o interior, onde passou a infância e parte da adolescência, e é quando chega ao lugar que sua memória se mostra cada vez mais efervescente, transportando-a de volta para episódios que, por mais simples e prosaicos que fossem, permaneceram registrados e acessíveis graças a pequenos estímulos. Um cheiro, um som ou um lugar são o bastante, e essa sua capacidade metonímica (de entender ou aludir ao todo pela parte), na verdade, é comum a qualquer pessoa, o que faz da protagonista alguém com quem se pode estabelecer identificação quase imediata. Então, ela começa a narrar suas lembranças, entre elas, a da primeira vez em que comeu abacaxi, fruta típica do trópicos e de sabor exótico às papilas gustativas orientais, acostumados com algo mais suave, como banana. É curioso ver que a família de Taeko sequer sabia como consumir a fruta, e nenhum deles se adaptou bem ao gosto. Ela, por sua vez, aprecia a nova sensação, embora não tenha incluído o abacaxi em seu cardápio posteriormente.
Takahata faz de Only yesterday uma coletânea de quadros cotidianos, sem qualquer malabarismo narrativo ou estético. Sua predileção é por flagrar a beleza da rotina e, com isso, mantém um diálogo estreito com seu compatriota Yazujiro Ozu, mestre em dirigir filmes sobre os acontecimentos mais banais. É o que se pode notar, por exemplo, em A rotina tem seu encanto (Sanma no aji, 1962) A diferença elementar entre ambos talvez seja apenas o traço escolhido, mas a animação de Takahata é de um nível de realismo - termo pretensioso e usado aqui com certa reserva - comparável ao de qualquer outro filme com personagens de carne e osso. A referência constante ao ontem, captável no título inglês da obra, que se manteve em solo brasileiro, evidencia o quanto somos feitos de acúmulos do passado, e voltar os olhos para trás ajuda muito a compreender o que nos tornamos hoje. Em outras palavras, cada pessoa é uma coleção de ontens que traduz o seu hoje e, a cada vez que somos apresentados ou nos apresentamos a alguém, nós e o outro temos uma bagagem mais ou menos pesada, a depender do que insistimos e/ou conseguimos carregar.
Em se tratando de fazer um percurso pela memória, existem, pelo menos, dois caminhos opostos a se trilhar: em um extremo, reside uma idealização que transforma passado e felicidade em sinônimos perfeitos, um modus vivendi que o Romantismo ensinou a cultivar; no outro, está a ideia de que só arrependimentos e fatos a serem superados. No caso de Taeko, nem um nem outro extremo é abraçado. Ela sabe que há recordações que fazem bem, que podem ser levadas até o fim da vida, e mesmo as tristezas que experimentou trouxeram algum tipo de aprendizado. A certa altura, em uma conversa ao ar livre com dois jovens de idade próxima à sua, ela comenta sobre sua frustração em não ter se tornado atriz, e relata como chegou perto da oportunidade de atuar sobre os palcos na época do colégio. É quando a testemunhamos inteiramente dedicada à personagem que ganhou em uma peça e, apesar de ser um papel de coadjuvante, ela luta por seu espaço a até insere um "caco" em sua fala, desagradando à professora. Era visionária demais para o seu gosto.
Com o passar dos anos, o sonho de interpretar ficou restrito ao passado e foi devidamente superado, o que se pode verificar através da tranquilidade com que ela consegue se referir a ele. Discorrer sobre o que ainda machuca é sempre mais difícil, quando não, impossível, assim como o perdão sincero inclui lembrar do que o tornou necessário sem que essa lembrança rime com algum tipo de dor. Only yesterday é assim: poesia singela, que surge de onde menos se espera, e vai cativando o coração do espectador afeito a histórias simples que abarcam uma vasta gama de pensamentos com minimalismo. É incrível perceber o quanto Takahata é bom nisso, e ele já havia demonstrado essa capacidade de invadir os recônditos dos sentimentos com O túmulo dos vagalumes (Hotaru no haka, 1988), em que abordava o amor incondicional entre irmãos durante o transcorrer de uma guerra. Ambos são filmes impregnados de ternura e atestam o quanto os japoneses conseguem emocionar sem recorrer a trilhas sonoras pautadas por instrumentos de cordas e a diálogos piegas - essas, em geral, são escolhas dos estadunidenses.
A temática rendeu outra animação digna de ser conferida, o israelense Valsa com Bashir (Vals im Bashir, 2008), que funde os limites já estreitos entre ficção e documentário para apresentar o drama do diretor Ari Folman, cujas lembranças de quando viveu a guerra civil em seu país se dissiparam em parte. O que a produção tem de mais interessante é mostrar que nossa memória é traiçoeira, e pode reescrever nossa própria história, sobretudo quando esta é dolorida demais e não nos deixaria seguir em frente. De alguma maneira, ela faz uma dobradinha perfeita com Only yesterday e, juntas, as animações fazem ver o quanto a construção da identidade de um indivíduo passa pela memória, que, em uma definição extremamento simplificada, é um reservatório de encantos e angústias, um duelo de forças antagônicas e, por isso mesmo, contraditórias. Quem nunca recomendou a si mesmo para esquecer algo? Quem não tem a experiência de querer congelar um instante e, ao mesmo tempo, saber que, em breve, ele estará apenas na mente?
10/10
Texto carinhosamente dedicado a Cleidson dos Santos Lourenço, amigo com quem posso compartilhar a alegria de ser cinéfilo
Que texto lindo, amigo! A dedicatória veio sem que me lembrasse de que você a faria, deu um pequeno choque de felicidade, rsrs. Parabéns pelo texto (um dos seus melhores, devo dizer), obrigado pela dedicatória e pela amizade, e vamos construir a partir dela essas boas memórias, das que fazem a gente olhar a vida com ternura, cheia de sentido!
ResponderExcluir