Faça a coisa certa e o discurso que não ficou datado

No dia mais quente do verão, no Brooklyn, pessoas absolutamente comuns vivem suas vidas. O calor parece influenciar seu humor e suas atitudes, e é quase um personagem de Faça a coisa certa (Do the right thing, 1989), manifesto em forma de audiovisual escrito e dirigido por Spike Lee. Em seu segundo longa-metragem para o cinema, o realizador nascido em Atlanta elegeu a discussão da intolerância como pedra angular, especialmente a que vem à tona por diferenças étnicas. Tudo começa quando um dos frequentadores da mais concorrida pizzaria do bairro, habitado por uma maioria negra, fica indignado ao constatar que a parede do local é coberta por fotografias de ídolos brancos. Esse cliente inconformado atende pelo nome de Buggin' Out (Giancarlo Esposito), e assume uma postura de ativista da "causa negra", por assim dizer, propondo um boicote ao estabelecimento diante da recusa de Sal (Danny Aielo), o dono, em substituir as imagens da parede por figuras ilustres "de cor".  

Ao longo de sua duração, o filme expõe alguns absurdos causados pela incapacidade de se colocar no lugar do outro, ora com traços dramáticos, ora com tintas cômicas, num equilíbrio admirável. Sal e Buggin' Out acabam se colocando de lados opostos, e o dono da pizzaria conta com a anuência dos filhos, os aparvalhados Pino (John Turturro) e Vito (Richard Edson), que não perdem tempo quando o assunto é menosprezar os frequentadores negros do lugar, e dedicam especial hostilidade, por assim dizer, ao inimigo recém-adquirido. O interessante é que, a certa altura, um deles é confrontado em seu raciocínio tacanho por Mookie (o próprio Lee), um dos funcionários da casa, justamente um negro. Em uma das discussões com o filho do chefe, o rapaz sugere fortemente que, na verdade, ele queria ser como um deles e sente uma admiração recolhida pelos negros. Faz todo o sentido, afinal, é muito comum que o ser humano finja repulsa por aquilo que gostaria de ser, mas não consegue. Essa máxima já foi bem representada pela fábula da raposa e das uvas, e Mookie alude indiretamente a ela com Pino, em uma das belas sacadas do roteiro.

O discurso bem articulado de Lee não se restringe a esse âmbito. Por todo o bairro, sua câmera flagra comportamentos e ideologias reprováveis que colocam em rota de colisão tantos negros e brancos quanto americanos e asiáticos, bem como outros seres humanos que diferem apenas no tom de pele, na nacionalidade e em um traço cultural aqui ou ali.  Passadas mais de duas décadas do lançamento do filme, é duro constatar que ele não ficou datado, e a mesa continua posta, sendo necessário que todos se assentem ao seu redor para seguir com a discussão a respeito do assunto até que se chegue a um consenso razoável. Em tempos de forte correção política como o são esses anos 2000, abordar a questão está cada vez mais difícil, porque o termo "preconceito" se encontra banalizado e qualquer comentário é rapidamente tachado do adjetivo a que ele dá origem. Faça a coisa certa demonstra, acima de tudo, que a disposição para o diálogo franco precisa vir de ambas as partes envolvidas em qualquer debate ou conflito, sob pena de uma chuva de impropérios que não chega a lugar nenhum. Talvez seja essa, ao mesmo tempo, a maior qualidade e o maior defeito da obra: não ter ficado datada.


Ao acompanhar de fora os variados focos de desentendimento que se somam ao longo da narrativa, o espectador fica numa posição privilegiada. A depender de seu aracabouço ideológico e/ou empírico, as reações e falas dos personagens, humanos e, por isso mesmo, verossímeis até a alma, podem soar até mesmo divertidas pelo que carregam de bizarras e inúeteis. Afinal, vale relembrar o tempo todo que estão todos encerrados sob a mesma condição, e qualquer diferença externa é insuficiente para justificar qualquer tipo de hierarquia. É isso que muitos ali precisam descobrir, a começar por Buggin' Out, cuja postura é tão ou mais preconceituosa que a de Sal ou dos seus filhos, para não dizer reacionária, na medida em que não constrói qualquer ponte para o diálogo, muito menos para alguma espécie de concórdia. Também cabe afirmar que, além de muitas diferenças serem saudáveis nas relações humanas, o gostar não passa, necessariamente, pelo acolhimento mútuo de opiniões sobre temas prosaicos ou estilos de vida. E o que dizer do jogo de gato e rato entre a madre superiora de Ruby Dee com o seu vizinho de quarteirão? Delicioso como dramaturgia, pernicioso como realidade.

A propósito do título, a escolha não poderia vir a calhar melhor: ele vem de uma frase famosa proferida por Malcolm X, paladino da luta dos negros para terem seus direitos assegurados e que se posicionou de forma contundente contra os crimes cometidos pelos brancos contra a sua etnia. Entretanto, a frase só serviu de título do filme no Brasil, já que optaram por outra em Portugal: Não dês bronca. Diferenças culturais, afinal, que não devem ser tratadas sob o rótulo de certas ou erradas, melhores ou piores. Uma produção esmerada e tão acessível como essa há de nos ensinar algo, e nada melhor do que já ir praticando a tolerância. E, como todo trabalho bem-sucedido, há muitos nomes envolvidos aos quais se deve elogiar. Além de Lee, que se desdobra dirigindo, escrevendo e atuando, merecem destaque Aiello, impecável como o empresário cheio de contradições, que "amaodeia" os frequentadores da pizzaria e trava embates com Buggin' Out que sintetizam toda uma corrente de pensamento que se esconde sob o verniz mentiroso da educação que, supostamente, encobriria seus conceitos abomináveis. 

Todavia, os grandes preconceituosos da história são os personagens negros, maioria em cena, que esmagam os seus algozes devolvendo a eles o mesmo tratamento que seus antepassados recebiam. O curioso é que a hostilidade desses negros vem antes mesmo que os brancos possam dar qualquer margem para recebê-la, e essa inversão torna Faça a coisa certa ainda mais relevante. Lee não deixou seu "sangue negro" subir a cabeça e retratar sua etnia como coitada ou vítima. Antes, escolheu suscitar a reflexão invertendo os papéis seculares dessa história, mesmo porque o cenário em que ela se ambienta propicia tal escolha. Assim, vemos uma minoria branca atingida pelo mesmo ódio que destila em outras ocasiões, e uma cena em especial é ilustrativa dessa constatação. A certa altura, a pizzaria é destruída em um incêndio, quando as reações dos polos da discórdia atingem o seu ápice, e sobra até para os imigrantes orientais que mantêm o seu negócio em frente a ela. Numa atitude desesperada, o dono do estabelecimento se coloca diante dele e implora para ser poupado, apelando para uma misericórdia (palavra de origem grega que, tomada em sua acepção literal, significa "pôr o coração na miséria", no caso, de alguém) que nem sabe se ainda existe. E, até que chegue o desfecho desse enredo, acumulam-se os momentos dignos de serem pensados, daqueles que tornam o Cinema, assim como toda produção ficcional, uma porta aberta para o flagrante e a análise da nossa humanidade combalida.

8.5/10

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