Um grito abafado por reparação em Fruitvale station - A última parada

Um episódio real traumático serve de inspiração a Fruitvale station – A última parada (Fruitvale station, 2012). Pouco depois das comemorações pela passagem de 2008 para 2009 nos Estados Unidos, o agir truculento e carregado de preconceito da Polícia de São Francisco na estação de metrô que dá nome ao filme arrancou a vida de Oscar Grant (Michael B. Jordan), um jovem de 22 anos que estava acompanhado de alguns amigos e da esposa. De volta para casa após a tradicional queima de fogos, às quais nem conseguem chegar a tempo, eles são visados pelas autoridades policiais depois de se envolverem num foco de desentendimento. As consequências dessa aproximação dos chamados “agentes da lei” acabam se revelando desastrosas e mostrando com toda a força o racismo de um país ainda tido como referência cultural, a começar pelo idioma.  

Entretanto, o longa-metragem realizado e escrito por Ryan Coogler se fixa primeiramente nas horas que antecederam o fatídico incidente, apresentando o cotidiano de reveses enfrentado por Oscar. Pai de uma garotinha com seus 7, 8 anos, ele esconde da esposa Sophina (Melonie Diaz) que perdeu o emprego em supermercado há uma semana por causa dos seus atrasos recorrentes. Apesar da demissão justa, ele ainda tinha esperança de reaver sua vaga de trabalho, o que seu ex-chefe mostra ser impossível, já que outro funcionário já ocupou o posto. Então, se vê obrigado a revelar a má notícia e entra em um novo conflito com a mulher, que já havia levantado a suspeita de uma traição da parte dele. Oscar ainda tem que se desdobrar para comparecer ao aniversário da mãe, Wanda (Octavia Spencer), única pessoa que parece ter continuado ao seu lado depois que ele foi preso por tráfico de drogas.

Calcado nessa conjunção de elementos densos, Fruitvale station – A última parada comprova o quanto a vida real pode ser pródiga em situações de alta dramaticidade. O olhar de Coogler se voltou para um fato que despertou comoção geral quando foi noticiado e, ao transformá-lo em Cinema, amplificou a intensidade de uma história por si só bastante pungente e capaz de levar o espectador à indignação. Sem recorrer aos esquematismos seculares (quiçá milenares) de mocinhos e bandidos, o roteiro expõe as dificuldades práticas de um homem que construiu sua própria família de maneira desastrada, o que nada tem a ver com a sua capacidade de dar e receber amor da filha e da esposa. Até mesmo pequenos atos de “deseducação”, como entregar à menina um pacote de doces escondido da mulher, ele comete em nome de ver um sorriso em seu rosto. Por ser alguém extremamente humano, Oscar pode ser encarado em sua complexidade, não cabendo julgamentos superficiais sobre sua conduta.


A construção da narrativa está longe de ser inovadora, o que se revela um dos poucos senãos de Coogler. Atualmente em voga na seara hollywoodiana, a estratégia de mostrar a culminância de um evento para, logo em seguida, introduzir o público em um longo flashback, é utilizada aqui. Mas as únicas formas de saber para onde a vida do protagonista caminha são lendo uma sinopse mais detalhada do filme – essa crítica não vai muito longe nesse sentido – e vendo o filme. Ainda assim, não há uma diluição do impacto das sequências apresentadas nos minutos finais da produção, dessa vez, encenadas, que fez sua estreia mundial no Festival de Sundance, reduto autenticado do Cinema independente. Meses depois, o filme ganhou ainda mais projeção ao fazer parte da seleção oficial de Cannes, onde foi exibido dentro da mostra Um Certo Olhar, dedicada a cineastas estreantes com potencial para se tornar grandes nomes nos próximos anos. Saiu do evento merecidamente laureado com o Prêmio Avenir de melhor longa-metragem.

No que se refere aos seus intérpretes, há mais méritos no filme. A começar por Jordan, o elenco demonstra afiação e naturalidade tamanha que é fácil esquecer que estamos diante de atores. É o primeiro grande papel confiado ao jovem, que acumulava personagens periféricos em séries televisivas e filmes de menor visibilidade e bilheteria e, de certa forma, ele pode ser considerado uma revelação na pele de Oscar, uma entre tantas engrenagens de um sistema cruel no qual, definitivamente, as oportunidades não são para todos. Por sua vez, Spencer – vencedora do Oscar de atriz coadjuvante em 2012 por Histórias cruzadas (The help, 2011), extrai a força de sua desempenho da compreensão do sentimento de uma mãe por um filho: incondicional, forte e para uma vida inteira. Jamais resvala no tom caricatural e emociona de verdade em várias cenas, sobretudo a da visita a Oscar na penitenciária e a da oração confiante a Deus para que a vida de seu filho não se perca. Sequências fortes que merecem ser recordadas como algumas das melhores do ano.

Ainda hoje, os envolvidos na tragédia esperam por reparação e seguem tendo passagens de ano doloridas que a força policial lhes causou. De alguma forma, Fruitvale station – A última parada é o grito de Coogler contra a covardia e uma forma de reavivar a lembrança a respeito de um entre vários episódios terríveis, muitos dos quais sequer chegam a ser televisionados. Mesmo porque, é sabido que fatos como os narrados aqui são fonte de interesse midiático durante um certo tempo. Uma vez tendo sido abordados à exaustão, acabam descartados e outros acontecimentos passam a ganhar as manchetes. E a maneira direta, muito próxima de uma objetividade, com que a câmera acompanha os acontecimentos de apenas 24 horas, tornam o filme ainda mais devastador e uma demonstração do quanto o Cinema funciona como depositário de memórias doloridas e chagas que, cicatrizadas ou abertas, continuam sendo sentidas.

8.5/10

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