Inventividade e beleza desastrada em A vida secreta de Walter Mitty

Uma consulta ao dicionário permite verificar o significado atribuído ao termo surrealismo: trata-se de um movimento artístico nascido na década de 20 do século passado cujo foco são as manifestações do pensamento desvinculado de qualquer preocupação lógica, moral ou artística. Entretanto, o termo foi se alargando com o passar dos anos e hoje recobre muito mais que as produções de um movimento, mas qualquer obra em que a liberdade criativa ultrapasse às fronteiras da verossimilhança, ainda que não se desligue totalmente dela. A vida secreta de Walter Mitty (The secret life of Walter Mitty, 2013) está contido nessa ampliação de conceito, e se revela como uma das comédias mais inventivas e cativantes dos últimos anos, um título que está longe de ser aceito com parcimônia, num típico caso de polêmica envolvendo a arte. 

O personagem-título, vivido por Ben Stiller, é um introvertido fotógrafo da revista Life – que existiu de fato entre 1936 e 2000. Voltada para o fotojornalismo, a publicação se tornou uma referência na área, veiculando imagens que rodaram o mundo e celebrizaram pessoas contextualizadas nas situações mais diversas. Quando o público se encontra com Walter, ele está à volta com a indecisão sobre fazer ou não contato com uma colega de trabalho que tem um perfil na mesma rede social que ele. De tão tímido, hesita várias vezes antes de enviar uma piscadinha para a moça – este é o modo como as pessoas interagem na tal rede, cujo objetivo é aproximar corações solitários. Quando, finalmente, se decide, um problema no administrador do site o impede de enviar a tal piscadinha. Chega a hora de ir novamente para o trabalho e, então, o cotidiano desbotado de Walter vem à tona.

Completamente desajeitado para o convívio com os próprio colegas, ele se refugia em seu laboratório de revelação de fotos, onde recebe um pacote com os negativos de uma série de imagens clicadas por Sean O’Connell (Sean Penn, em participação afetiva), que servem como sugestões para a capa da última edição impressa da revista, que está prestes a se tornar inteiramente digital e, com isso, muitos funcionários, sobretudo os mais novos, estão com a cabeça a prêmio. O problema começa quando ele e o amigo mais chegado, com quem divide o espaço do laboratório, notam que falta o negativo de número 24, justamente o exigido por Ted Hendricks (Adam Scott), sarcástico gerente de marketing contratado para modernizar a revista e conduzi-la em sua fase virtual. O sujeito de topete alinhado e ternos impecáveis faz chacota de Walter assim que percebe os seus momentos de ausência, em que se deixa dominar pelos pensamentos mais surreais possíveis, daí a menção ao surrealismo para se comentar sobre o filme.


Na imaginação de Walter, ele assume as mais variadas personas, coincidentemente ou não, muito mais atraentes e resolutas do que a sua figura real. É capaz de cortejar ser rodeios a bela Cheryl (Kristen Wiig), colega de trabalho para quem não consegue piscar na rede social e desafiar o novo chefe pelas ruas da cidade montado em um skate superpoderoso. Os arroubos criativos da mente do protagonista invadem a tela sem aviso prévio, e são o sopro de invenção de um filme que, visto de coração aberto, afaga o peito e instiga a aproveitar os momentos mais prosaicos. A exemplo de realizadores como Wes Anderson, que se vale do que há de bizarro no dia a dia, o Stiller diretor assume riscos e convida o espectador a uma aventura em que não há limites para a surpresa e o nonsense.

Demarcado em duas grandes fases, A vida secreta de Walter Mitty carrega os genes de um blockbuster em seu DNA, mas a constatação passa longe de ser depreciativa – por que viver em luta contra os filmes capazes de abraçar um público mais amplo? Os mais casmurros podem ter dificuldades em se conectar com a história, refilmagem de O homem de 8 vidas (The secret life of Walter Mitty, 1947), que tinha até Boris Karloff em seu elenco, mas o filme é bastante honesto em sua proposta. A primeira fase é centrada nos delírios imaginativos do fotógrafo e em como esses devaneios o conduzem a uma vida no piloto automático. Mais adiante, a necessidade misturada à curiosidade sobre o negativo desaparecido o impulsionam a uma série de aventuras genuínas, que incluem pular em um mar revolto, escapar do ataque de um tubarão e fugir a tempo do rio de lavas de um vulcão em atividade.

A odisseia bem-humorada de Walter, que produz transformações internas em sua personalidade, rendeu comparações com Forrest Gump – O contador de histórias (Forrest Gump, 1994), que também trazia um protagonista envolvido em mil peripécias. Semelhanças e diferenças à parte, A vida secreta de Walter Mitty é um delicioso achado na safra 2013 de comédias, em que o cinismo perde terreno para uma inocência quase pueril, sempre calcado em uma direção de fotografia estonteante que convida a deixar o retraimento de lado e a investir mais nos instantes que o cotidiano nos reserva. Não é qualquer um que pode experimentar tantas sensações extremas consecutivamente como Walter, mas ele vai bem longe para nos mostrar que o sonho é uma ferramenta poderosa para enfrentar o tédio de uma existência burocrática, presa a repetições. Por outro lado, enquanto estamos acordados, podemos encarar o desafio de encontrar a beleza incrustada na rotina.

9/10

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