Bala na cabeça, um teste de fogo para os códigos de amizade

Fundamentais a qualquer pessoa, os laços de amizade são a tônica de Bala na cabeça (Die xue jie tou, 1990), filme pertencente à fase chinesa do diretor John Woo. O foco está sobre três amigos de longa data cuja obstinação por uma vida mais confortável os empurra para longe da Hong Kong dos anos 60, cidade onde sempre moraram, e é justamente a busca insistente por ganhar suas vidas que, de variadas formas, os faz perdê-las. Ben (Tony Leung Chiu-Wai), Paul (Waise Lee) e Frank (Jacky Cheung) selaram um pacto de companheirismo e lealdade que parece inabalável, e mantém sua firmeza até onde o dinheiro permite. É quando o vil metal entra em cena que todos os anos de experiências em comum acumuladas parecem jamais ter existido.


Baseado em uma premissa de apelo universal, Woo concebeu um longa-metragem pungente em que há muito mais balas do que singular do título faz supor. O cineasta não economiza munição e coloca seus personagens em situações-limite que testam constantemente sua resistência e desafiam sua fidelidade um ao outro. Para além de toda a violência a que os espectadores de filmes de ação se habituaram, Bala na cabeça é uma história de feridas abertas e nunca totalmente cicatrizadas, que laceram muito mais do que uma infinidade de disparos. Os anos passam, mas a cura parece nunca chegar. Nesse sentido, estamos diante de um drama pesado, que pode nos colocar diante da nossa própria ambição e fazer questionar sobre o que, de fato, vale a pena para cada um. Ao mesmo tempo, apresenta os efeitos devastadores de uma busca que se torna maior do que a própria vida.

Todo esse drama atinge o seu ápice quando os amigos vão parar na Guerra do Vietnã, talvez o exemplo máximo do quanto os Estados Unidos se especializaram em exercitar a autoindulgência, entregando o posto de vilões a alguma nação oriental. Aqui, o episódio traumático sobretudo para os vietnamitas é visto sob a ótica de um circunvizinho, atento a um lado do conflito que lutou com os parcos recursos de que dispunha e surpreendeu os ianques com sua resistência sem precedentes. Mas Woo não demonstra o menor interesse em condenar ou absolver qualquer um dos lados: antes, prefere observar o quanto aquele ambiente de tensão fustiga o psicológico do trio, expondo-os a um nível insuportável de estresse e os conduzindo a atos extremos. Um deles é obrigado a escolher entre a própria vida e a de um combatente recém-conhecido, numa das sequências de maior tensão de toda a narrativa.

É duro constatar que todas essas provas de fogo correm uma amizade tão linda, e invertem gestos e simbologias construídas nos primeiros minutos da história, uma espécie de prólogo quase idílico e de promessas sinceras. Consciente da sinopse, o espectador já pode começar a sentir o desconforto de saber que todas aquelas palavras serão levadas pelo vento das adversidades. O maior acometido pela sede de grana é Paul, que se apega a um punhado de ouro e responde pelas primeiras rachaduras na amizade do trio, já que começa a colocar o metal precioso acima das tais promessas de um passado nem tão distante. À medida que esse apego financeiro se intensifica, Bala na cabeça nos faz testemunhar o desmonte dos seus escrúpulos e a alçar o personagem à condição de antagonista dos outros dois, que carregam as chagas mais profundas de um relacionamento estilhaçado.


Os movimentos de câmera de Woo são outro grande achado do filme. Em várias passagens, a lentidão com que filma os projéteis cruzando os espaços e fazendo suas vítimas potencializa o seu efeito destruidor, esmigalhando os nervos dos amigos e trincando seus ouvidos, que se tornam captores de barulhos incessantes, sobretudo Frank, o mais atingido por toda aquela espiral de pesadelo que também envolve mafiosos interessados em manter seus negócios e privilégios. Tais movimentos e ângulos fazem parte do estilo do realizador, que migrou para os Estados Unidos e viu seu talento regredir - se é que isso existe - e o sucesso de seus filmes despencar. Seguramente, Bala na cabeça pertence a uma época áurea de sua filmografia, pautada por enredos em que o drama e a ação se equilibram de maneira orgânica e se constituem em muito mais que entretenimento acéfalo.

O trio de atores funciona impecavelmente ao longo das mais de duas horas de projeção. Dos três, Chiu-Wai foi mais longe, e repetiu a parceria com o diretor dois anos depois em Fervura máxima (Lat sau san taam, 1992), onde também não era poupado das armas de fogo. Seu papel na trama de Bala na cabeça é o de mediador entre os outros dois amigos. Enquanto Frank é tempestade emocional e fica na linha de frente de uma bifurcação absurda, Paul se deixa ser possuído pelo que deveria possuir. Como fiel dessa balança altamente instável, ele presencia momentos avassaladores e precisa manter a firmeza que os demais perderam, tantas vezes esquecendo de si mesmo para isso. Cheung, por sua vez, somou alguns trabalhos posteriores no Cinema e vinha de duas colaborações com Wong Kar-Wai, de quem Chiu-Wai acabou se tornando queridinho, e representa o extremo dessa aventura desastrosa dos amigos para além dos limites de Hong Kong. Por sua vez, Lee teve uma filmografia muito mais curta, tendo sido dirigido por Woo anteriormente e rodando apenas mais um filme após Bala na cabeça.

Alguns apontam um certo parentesco com O franco atirador (The deer hunter, 1978), um longo estudo sobre a devastação mental de quem vai à guerra (também do Vietnã) e passa o resto da vida tentando superar o que só é capaz de entender quem viveu - nunca vamos além de meras testemunhas dos acontecimentos. As semelhanças temáticas e sinópticas entre ambos são nítidas e fomentam a concepção de que os conflitos armados são matérias-primas para filmes memoráveis, que clamam por nossa humanidade. Esse diálogo entre John Woo e Michael Cimino é uma das provas de que o Cinema, como todas as demais vertentes da Arte, congrega pessoas e lugares e pode produzir o enfrentamento do homem consigo mesmo. Longe de salvar quem quer seja, ela aponta possibilidades e chama a atenção para um mundo em colapso. Após termos sido expostos a tantos momentos doloridos cujo gatilho se deveu à ambição financeira, podemos recorrer à Bíblia, que afirma categoricamente: "Porque o amor ao dinheiro é a raiz de toda a espécie de males; e nessa cobiça alguns se desviaram da fé, e se traspassaram a si mesmos com muitas dores." (1Tm 6.10)

10/10

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