A poesia melancólica de A primeira noite de tranquilidade

“Por que a morte é a primeira noite de tranquilidade? Porque, finalmente, se dorme sem sonhos!”  (Goethe)


A melancolia é o sentimento fundamental do cinema de Valerio Zurlini. Seus personagens sempre aparecem embebidos nesse sentimento desolador, e passar pela vida sem experimentá-lo é simplesmente impossível. Atento aos seus efeitos e reações, o realizador italiano concebeu obras maravilhosas em série, vagando entre o desconforto da existência e os lampejos de contentamento que certos encontros podem trazer. A primeira noite de tranquilidade (La prima notte di quiete, 1972) é um dos títulos de sua carreira em que se pode flagrar essa predileção por um terreno de emoções tão incômodas, que não deixam o espectador tão logo a sessão acaba. Passamos a ter parte na angústia de Daniele Dominici (Alain Delon), um professor em crise no casamento que vai a Rimini (cidade natal de Federico Fellini) para substituir um colega e logo trava amizade com os tipos marginais do local. Sua filosofia de trabalho é simples e direta: não se preocupa se os alunos vão aprender ou não, apenas faz sua parte e não quer ser atrapalhado em suas exposições. Permite, até mesmo, que os alunos fumem durante as aulas. 

Entre os jovens que ficam sob sua tutela nesse breve período de substituição, está Vanina Abati (Sabrina Petrovna), garota de beleza estonteante à qual ele não consegue ficar indiferente, por mais que simule o contrário. Seus primeiros diálogos são secos e distantes, mas a mesma aura melancólica que envolve o professor se enxerga na aluna, e nasce um romance malfadado entre os dois. A essa altura, a esposa de Daniele praticamente não aparece, o que não dá a chance de conhecermos um pouco de sua personalidade e tentar entender ao menos parte dos motivos geradores da crise no casamento. Zurlini nos faz acompanhar a rotina sensabor do mestre e não demonstra qualquer pressa em desenvolver um relacionamento do tipo paixão avassaladora entre ele e Vanina. Mesmo porque, não é o que cabe aos dois, desesperados silenciosos que encontram no olhar uma forma de expor seus peitos dilacerados. Se se pode falar em almas gêmeas aqui, é apenas no sentido de vazios compartilhados, a exemplo do que ocorre nos filmes de Michelangelo Antonioni, compatriota e contemporâneo do diretor.

Como na Trilogia da Incomunicabilidade, os filmes de Zurlini valorizam os silêncios e os ecos sentimentais revelados em pequenos gestos. São personagens envoltos em si mesmos e incapazes de grandes arroubos emocionais, a não ser em situações realmente extremas. Daniele se encaixa nesse perfil e exibe suas contradições: mesmo sendo um homem inteligente, bonito e charmoso, carrega medos e inseguranças dignos de um adolescente que acabou de chegar à fase dos namoros. Também se mostra egoísta com sua insistência em meditar apenas sobre as próprias lacunas e não oferecer aos alunos todo o conhecimento que adquiriu ao longo dos estudos e do exercício da profissão. Em suas aulas, ele privilegia os monólogos e cultiva um certo sadismo ao fazer perguntas sobre literatura, disciplina que leciona. Nesse sentido, o roteiro escrito pelo diretor em colaboração com Enrico Medioli, seu parceiro também em A moça com a valise (La ragazza con la valigia, 1961), não demonstra qualquer preocupação em tornar Daniele agradável. Ele está muito longe de um perfil virtuoso e heroico. Para alguns, pode funcionar como um espelo de emoções e atitudes (ou da falta delas) límpido demais e, portanto, sufocante.



A tranquilidade presente nos títulos original e brasileiro do filme é uma quimera. Nenhum dos personagens a encontra em sua jornada pela vida, o que leva um deles a mencionar Goethe, que sentenciou que, somente na morte, quando não se tem mais sonhos, é possível estar tranquilo. É de um pessimismo atroz a afirmação, mas que há que se lembrar que se trata do autor fundador do Romantismo alemão, o mesmo cuja obra mais famosa, Os sofrimentos do jovem Werther, causou uma onda de suicídios em boa parte dos seus leitores. Para ele, a fonte de todos os sofrimentos era o amor, e vivê-lo era, em última instância, apegar-se à morte. Por outro lado, Daniele não chega sequer a flertar com a ideia de suicídio e, justamente por pensar tanto na morte, prova que está cheio de vida, já que o homem tende a buscar fora de si o que mais lhe falta. Sua perseguição é também a Vanina, que namora um dos jovens alunos desajustados do liceu. O rapaz a trai com o conhecimento da jovem, que nunca chega a colocar um fim definitivo no relacionamento de idas e vindas. 

Sem qualquer idílio amoroso para edulcorar os olhos e o coração do espectador, A primeira noite de tranquilidade se afirma como uma meditação pesada sobre as chagas da vontade, que converte em objeto de desejo tudo o que não se pode ter ou alcançar com certa facilidade. Há algumas cenas emblemáticas a esse respeito, mas a que, talvez, seja a mais representativa, acontece em uma boate. Sob as luzes multicoloridas alternadas com uma certa escuridão, Vanina dança quase involuntariamente sedutora, ao alcance do olhar de Daniele, que a contempla como quem está diante de uma miragem. Não há mais como negar: existe um sentimento forte pulsando em seu coração, mas de uma complexidade muito maior do que uma paixão, ainda que este sentimento seja suficientemente complexo para ser traduzido em algum tipo de definição - os exemplos acabam sendo uma saída razoável. Eis mais um exemplo do diálogo de sua obra com a de Antonioni, que também se expressa aqui pela presença de Léa Massari no elenco, uma das atrizes-assinatura do realizador. Ela dá vida à Monica, esposa de Daniele.

Talvez estejam ali a síntese da proposta zurliniana e mais uma afirmação de suas temática preferidas: a vida que escapa por entre os dedos, a distância que insiste em permanecer mesmo na proximidade física, a inquietude que invade e fica. É o que se contempla no relacionamento conturbado dos protagonistas de Verão violento (Estate violenta, 1959), no amor doloroso do garoto de A moça com a valise e na força dos laços fraternos revelada em Dois destinos (Cronaca familiare, 1962). A cada filme, ele tem seu jeito de arrebentar o público e acenar para a dificuldade em lidar com o que vai no coração, além de compartilhar seu pensamento de que escapar é um sonho muito distante, como dá conta de demonstrar com Daniele e Vanina em sua busca por um sopro de recomeço que seja. Ainda em seu olhar, o encontro de duas pessoas e uma possível e/ou breve realização no amor é solidão disfarçada, à qual se amarra como quem vê na âncora a chance de não ficar à deriva. Hoje, um grande tributário desse cinema é Philippe Garrel, com seus retratos de corações combalidos e cenas de danças angustiantes, dos quais somos feitos testemunhas impotentes. Esse trio de realizadores flagra homens e mulheres  à ingrata procura de calmaria e sintetiza que estar preso a este corpo mortal é o maior de todos os desconfortos.

9/10

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