Hair e os delírios musicados de uma geração

Musicais podem ser muito charmosos quando se investe em uma trama consistente nas quais as canções não são meros adornos. Demonstrando consciência dessa premissa, Milos Forman concebeu Hair (idem, 1979), a versão cinematográfica da peça teatral homônima que se tornou o hino de toda uma geração de alternativos. O longa-metragem se baseia no espírito libertário trazido pela década de 70 e, de certa forma, antecipa os excessos que viriam a se tornar imediatamente associáveis à década posterior com um senso de humor aguçadíssimo. Tudo tem início a partir do momento em que Claude (John Savage), um jovem de Oklahoma, é recrutado para fazer parte da tropa de soldados estadunidenses da Guerra do Vietnã. Logo que chega a Nova York, é recebido por um grupo de hippies cheios de conceitos avessos ao status quo, e eles tentam demonstrar para o rapaz o quanto a sociedade convencional está cheia de problemas. Esse encontro é a deixa para a primeira de muitas canções nada politicamente corretas que pontuam a narrativa, com leves pitadas de reflexão e crítica social. 

Sem dúvida, muito da força de Hair vem de sua trilha sonora brilhante e envolvente, mas o filme não sobreviveria se essa fosse a sua única qualidade. O elenco também tem méritos, e se mostra afiadíssimo nas cenas e nos diálogos mais saidinhos, por assim dizer. Sem falar nas coreografias muito bem orquestradas e executadas, que transformam o contato com o filme em algo equivalente a uma ida a qualquer evento dançante. A mais icônica das canções talvez seja a que faz menção à Era de Aquário, um conceito propalado pelos hippies para se referir a um novo tempo, pontuado pela fraternidade e pelo prazer particular acima de tudo, que ganhou adeptos com alta velocidade. É difícil não se contagiar pela performance dos personagens ao cantá-la e dançá-la, sendo franca demonstração do campo magnético atrativo emanado por Hair. Essa tribo de “bichos-grilos” é liderada por Berger (Treat Williams), que acaba seduzindo Claude a se juntar a eles e a promover deliciosas arruaças cidade afora.

Cumpre destacar que a peça da Broadway serviu de inspiração, mas não de base, para o filme de Forman. Há uma série de apropriações particulares do diretor aqui, desde as canções entoadas até a maneira com que alguns personagens são retratados, passando pela ordem de execução das músicas. Portanto, é uma versão livre e divertida do musical, cuja atemporalidade é atestada pela possibilidade de identificação que o filme pode despertar. Hair não se importa em ser desbocado, e faz frente a certo conservadorismo vigente em seu tempo, o que se trata, a princípio, de uma constatação, não de uma crítica ou um elogio. Por meio de seus números musicais algo ousados, o filme cospe na cara de uma sociedade cínica e pseudopuritana, arrancando gargalhadas pelo inusitado de suas situações. Uma das mais curiosas delas é, sem dúvida, a que mostra o processo de alistamente de Claude e outros jovens no Exército. Durante os procedimentos padrão, surge mais uma canção, que coloca em xeque a sexualidade de boa parte dos militares presentes na cena. Não se pode negar que é uma sequência dotada de um alto grau de senso de humor que, aliás, é uma das cenas-síntese da verve sarcástica que domina o filme.


A escolha de Forman para a direção também se revelou acertada. Ainda no começo da década de 70, o estúdio pensou em George Lucas para assumir o cargo, mas ele já se ocupara com as filmagens de Loucuras de verão (American Graffiti, 1973) e Hair acabou sendo rodado somente seis anos depois. Quando se confere de perto o trabalho do cineasta tcheco, entende-se que ele o desenvolveu muito bem, colocando sua câmera como observadora de um cenários de múltiplas transformações e exibindo um certo carinho no trato com seus protagonistas, verdadeiros paladinos da contracultura. A essa altura, ele já tinha imigrado para o solo estadunidense, onde já tinha assinado e ainda assinaria obras de grande relevância para o cinema tal como esta, entre as quais se podem citar Um estranho no ninho (One flew over the cuckoo's nest, 1975) e O povo contra Larry Flynt (The people vs. Larry Flynt, 1996). Forman também a evita a caricatura e apresenta as contradições de uma juventude que, antes de qualquer coisa, mostrava-se à procura de um lugar no mundo e de uma ideologia à qual se filiar. Tal qual a geração que lhe é precursora, o que faz de Hair uma espécie de primo de segundo grau de longas como Os sonhadores (The dreamers, 2003) e uma sutil inspiração para Aconteceu em Woodstock (Taking Woodstock, 2009).

Em meio à ode dionisíaca proporcionada por Hair, existe espaço para a descoberta do amor e do desejo, que se reflete no interesse crescente de Claude por Sheila (Beverly D’Angelo), que, mesmo parecendo corresponder aos seus sentimentos, hesita em explicitá-los e o leva a um quase inocente jogo de gato e rato. São temas universais que ganham uma roupagem muito bem-humorada, e que, com leveza, seduzem o público atento às histórias bem contadas com um ritmo contagiante, com o perdão do trocadilho. A fotografia, por outro lado, é menos deslumbrante que a da maioria dos musicais, o que não significa afirmar que é descuidada. Para uma trama que visita o ambiente de preparação para a guerra, a escolha por cliques menos alegóricos é sensata e eficiente, e faz o público prestar atenção nos outros elementos comentados aqui. Aliás, a peleja dos novos amigos de Claude é para impedir que ele faça parte do balé cruento que uma guerra como a que os ianques estavam travando contra os vietcongues representava. E, quando Berger consegue se infiltrar no QG dos soldados e resgatar Claude dessa iminência, o filme se aproxima de seu desfecho e inscreve seu nome na galeria de musicais divertidos, reflexivos e relevantes, exibindo os delírios musicados de uma geração.

8/10

Comentários

  1. Gosto muito de "Hair", mas acho que o filme perde a força da metade para o fim

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