Hair e os delírios musicados de uma geração
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Sem dúvida, muito da força de Hair vem de sua trilha sonora brilhante e envolvente, mas o filme não sobreviveria se essa fosse a sua única qualidade. O elenco também tem méritos, e se mostra afiadíssimo nas cenas e nos diálogos mais saidinhos, por assim dizer. Sem falar nas coreografias muito bem orquestradas e executadas, que transformam o contato com o filme em algo equivalente a uma ida a qualquer evento dançante. A mais icônica das canções talvez seja a que faz menção à Era de Aquário, um conceito propalado pelos hippies para se referir a um novo tempo, pontuado pela fraternidade e pelo prazer particular acima de tudo, que ganhou adeptos com alta velocidade. É difícil não se contagiar pela performance dos personagens ao cantá-la e dançá-la, sendo franca demonstração do campo magnético atrativo emanado por Hair. Essa tribo de “bichos-grilos” é liderada por Berger (Treat Williams), que acaba seduzindo Claude a se juntar a eles e a promover deliciosas arruaças cidade afora.
Cumpre destacar que a peça da Broadway serviu de inspiração, mas não de base, para o filme de Forman. Há uma série de apropriações particulares do diretor aqui, desde as canções entoadas até a maneira com que alguns personagens são retratados, passando pela ordem de execução das músicas. Portanto, é uma versão livre e divertida do musical, cuja atemporalidade é atestada pela possibilidade de identificação que o filme pode despertar. Hair não se importa em ser desbocado, e faz frente a certo conservadorismo vigente em seu tempo, o que se trata, a princípio, de uma constatação, não de uma crítica ou um elogio. Por meio de seus números musicais algo ousados, o filme cospe na cara de uma sociedade cínica e pseudopuritana, arrancando gargalhadas pelo inusitado de suas situações. Uma das mais curiosas delas é, sem dúvida, a que mostra o processo de alistamente de Claude e outros jovens no Exército. Durante os procedimentos padrão, surge mais uma canção, que coloca em xeque a sexualidade de boa parte dos militares presentes na cena. Não se pode negar que é uma sequência dotada de um alto grau de senso de humor que, aliás, é uma das cenas-síntese da verve sarcástica que domina o filme.
A escolha de Forman para a direção também se revelou acertada. Ainda no começo da década de 70, o estúdio pensou em George Lucas para assumir o cargo, mas ele já se ocupara com as filmagens de Loucuras de verão (American Graffiti, 1973) e Hair acabou sendo rodado somente seis anos depois. Quando se confere de perto o trabalho do cineasta tcheco, entende-se que ele o desenvolveu muito bem, colocando sua câmera como observadora de um cenários de múltiplas transformações e exibindo um certo carinho no trato com seus protagonistas, verdadeiros paladinos da contracultura. A essa altura, ele já tinha imigrado para o solo estadunidense, onde já tinha assinado e ainda assinaria obras de grande relevância para o cinema tal como esta, entre as quais se podem citar Um estranho no ninho (One flew over the cuckoo's nest, 1975) e O povo contra Larry Flynt (The people vs. Larry Flynt, 1996). Forman também a evita a caricatura e apresenta as contradições de uma juventude que, antes de qualquer coisa, mostrava-se à procura de um lugar no mundo e de uma ideologia à qual se filiar. Tal qual a geração que lhe é precursora, o que faz de Hair uma espécie de primo de segundo grau de longas como Os sonhadores (The dreamers, 2003) e uma sutil inspiração para Aconteceu em Woodstock (Taking Woodstock, 2009).
Em meio à ode dionisíaca proporcionada por Hair, existe espaço para a descoberta do amor e do desejo, que se reflete no interesse crescente de Claude por Sheila (Beverly D’Angelo), que, mesmo parecendo corresponder aos seus sentimentos, hesita em explicitá-los e o leva a um quase inocente jogo de gato e rato. São temas universais que ganham uma roupagem muito bem-humorada, e que, com leveza, seduzem o público atento às histórias bem contadas com um ritmo contagiante, com o perdão do trocadilho. A fotografia, por outro lado, é menos deslumbrante que a da maioria dos musicais, o que não significa afirmar que é descuidada. Para uma trama que visita o ambiente de preparação para a guerra, a escolha por cliques menos alegóricos é sensata e eficiente, e faz o público prestar atenção nos outros elementos comentados aqui. Aliás, a peleja dos novos amigos de Claude é para impedir que ele faça parte do balé cruento que uma guerra como a que os ianques estavam travando contra os vietcongues representava. E, quando Berger consegue se infiltrar no QG dos soldados e resgatar Claude dessa iminência, o filme se aproxima de seu desfecho e inscreve seu nome na galeria de musicais divertidos, reflexivos e relevantes, exibindo os delírios musicados de uma geração.
8/10
Gosto muito de "Hair", mas acho que o filme perde a força da metade para o fim
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