Profissão: repórter e o mundo como fonte de desconforto

A sensação de desconforto com o mundo e a própria existência é matéria-prima recorrente na obra de Michelangelo Antonioni, verificável em todos os seus grandes filmes – ou, pelo menos, na grande maioria deles. Autor da angustiante Trilogia da Incomunicabilidade, ele insiste em olhar para indivíduos mergulhados no tédio. Os filmes que a compõem, rodados sob um desolador filtro em preto e branco, são o auge dessa observação incômoda. E, de algum modo, ele continuou perseguindo essa temática em seus filmes subsequentes, propondo um epílogo para a Trilogia, partindo para a Inglaterra logo em seguida – onde filmou o subestimado Blow up – Depois daquele beijo (Blow up, 1966) – e, então chegou aos EUA. Ali concebeu o igualmente desprezado Zabriskie Point (idem, 1970), insistindo na abordagem dos seus conceitos caros. Até que chegou à metade daquela década e filmou Profissão: repórter (The passenger, 1975), escalando o já famoso e querido Jack Nicholson para protagonista. 

O ator dá vida a David Locke, um repórter cansado de ser quem é, cuja chance de mudar radicalmente surge de improviso. Em viagem pela África para capturar imagens e fazer entrevistas que serão usadas em um documentário, ele chega ao apogeu do seu desconforto existencial. Há um passado sob seus ombros, do qual bem pouco é apresentado ao espectador. Todavia, sua expressão de enfado é o suficiente para levar a crer que a vida não lhe anda sorrindo há tempos. Ao visitar o quarto de David Robertson (Chuck Mulvehill), um recém-conhecido que se hospedou com ele em uma pensão modestíssima, é o primeiro a constatar sua morte. Valendo-se do fato de ter o mesmo prenome que o falecido, decide-se por assumir a sua identidade e proceder à medida que confirmem o que, dali para a frente, passa a ser considerado um fato. Aos poucos, porém, o jornalista vai descobrir que há uma série de ônus derivados de sua atitude.

David Robertson estava envolvido com uma luta política para a qual assumiu a posição de negociante de armamentos, levando-o a manter contato com os líderes de uma guerra civil. Para não ter sua farsa descoberta, ele precisa agir da forma mais convincente possível, até para si mesmo, o que o leva a experimentar a máxima de que uma mentira, para ser sustentada, depende de várias outras mentiras sobrepostas à primeira, sob pena de vir à tona a verdade que se deseja encoberta, com a qual não se deseja mais contato. O resultado é que ele passa a carregar um novo fardo: mudar de identidade não é acabar com os problemas. Em meio a esse novo cenário, surge também uma garota (Maria Schneider), que lhe serve como uma bela válvula de escape para o seu cotidiano quase descolorido. Nada de romance arrebatador, como o dos personagens principais de Zabriskie Point, apenas o compartilhamento de alguns instantes e uma profunda empatia proveniente do fato de ambos serem entediados e desconfortáveis.


Pela primeira vez, Antonioni elegeu um intérprete mais conhecido para um filme seu. Nicholson já trazia em seu currículo bons trabalhos com diretores de diferentes calibres. Com Mike Nichols, filmou Ânsia de amar (Carnal knowledge, 1971), Chinatown (idem, 1974), com Roman Polanski e, no mesmo ano, rodou Um estranho no ninho (One flew over the Cuckoo's nest, 1975), em que deu vida a um de seus personagens mais celebrados. Sua interpretação de David Locke/Robertson não está atrás dos grandes desempenhos nesses longas anteriores. Em olhares distantes e sorrisos enigmáticos, ele exprime o quanto o viver é poesia tediosa, mantendo com sua jovem amante diálogos que causam comoção pelo que trazem verossimilhança. A certa altura, os dois chegam à conclusão de que não existe via de escape para a miséria da condição humana, ao menos eles não chegam a conhecê-la. Ela, por sua vez, fora vista anteriormente em Último tango em Paris (Last tango in Paris, 1972), atuando sob a direção de Bernardo Bertolucci.

Essencialmente um drama, Profissão: repórter também tem ares de thriller político, ao colocar brevemente em discussão a guerrilha política na qual o verdadeiro Robertson estava envolvido e trazer depoimentos sobre a situação do continente africano àquela época. Entretanto, a inabilidade para lidar com as questões da vida e o ensimesmamento – o ato de um indivíduo voltar-se para dentro de si mesmo – são o foco de Antonioni, falecido em 2007, com apenas algumas horas de diferença para Ingmar Bergman, diretor cuja obra traz notáveis semelhanças com a sua. Ainda assim, o realizador sueco afirmou, certa vez, que Antonioni foi capaz de produzir somente duas obras-primas, e depois sua carreira degringolou. É uma curiosidade lamentável, já que ambos se mostraram profícuos examinadores dos silêncios eloquentes da alma e buscaram traduzir em imagens esse profundo mal-estar (a maior parte do tempo) que é estar vivo. Como em O deserto vermelho (Il deserto rosso, 1964) e o já citado por duas vezes Zabriskie Point, este aqui nos leva ao deserto, mostrando que, dentre tão poucas características comuns a todos os homens, emerge, principalmente, a de que estamos todos solitários, por mais numerosa que seja a multidão.

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