Exílios e os muitos rumos a tomar na vida

Exílios (Exils, 2004) rendeu a Tony Gatlif o prêmio de melhor diretor no Festival de Cannes, um acerto do júri de uma das mais tradicionais do cenário cinematográfico. Apoiado em uma narrativa que flagra um casal perambulando por muitos espaços, ele resume a essência de sua obra: a procura de um lugar no mundo, a identidade cultural das minorias e o pulsar musical que embriaga. O plano de abertura já evidencia essa coalizão de propostas ao colocar Zano (Romain Duris) de costas, olhando para a janela com o pensamento distante. Ao fundo, uma canção cigana, a primeira de várias que se espalham pelo filme e pavimentam um caminho de muitos entraves e bifurcações a ser percorrido pelo músico, que sugere à sua amante Naïma (Lubna Azabal) que eles conheçam a Argélia, terra de seus antepassados.

A título de curiosidade, o próprio Gatlif tem raízes argelinas, o que lhe confere um certo conhecimento de causa na abordagem da questão do fluxo migratório dos africanos para o continente europeu, tão atual quanto complexa. Zano e Naïma, entretanto, fazem o percurso contrário, tendo à sua frente uma longa estrada com muitas paradas e personagens para serem conhecidos. A caminho da Argélia, eles acabam fazendo um intervalo na Andaluzia, e ficam embevecidos com a explosão de cores, crenças e sensações proporcionada pelo lugar, no qual decidem se demorar um pouco mais. O lugar é a deixa para o realizador apresentar ao público uma cultura marcada pela pluralidade, que vai muito além do nomadismo e da quiromancia, características mais conhecidas do povo cigano. Exílios é um mergulho profundo em águas movimentadas, que infunde o conceito de alteridade e se revela uma experiência singular.

Não é preciso ser cigano para embarcar na viagem sensorial conduzida por Gatlif. Seu cinema se debruça sobre as tradições de seu povo, mas não fica restrito a ele, e se impõe como uma instigante observação sobre os muitos rumos que a vida oferece e que, a cada instante, escolhemos. O cineasta não tem qualquer interesse em levantar uma ideologia religiosa através de deprecações, o que, de certa forma, aproxima-o do Terrence Malick de A árvore da vida (The tree of life, 2011). Assim como o estadunidense, existe um forte interesse de Gatlif em abordar questões existenciais, mas cada um deles adota o seu próprio ritmo: no primeiro, sobeja a contemplação, ao passo que o segundo prefere inundar a tela com sensualidade e delírio intenso. Os personagens de Exílios são tomados por um vigor espiritual que os coloca em um longo transe, resumido em uma sequência de rito religioso que, antes de mais nada, é a tentativa de contato do homem com esferas dalém do mundo visível e palpável.


Fica patente que os protagonistas são almas andarilhas cuja morada é o mundo, que amam a descoberta, que desejam mais a viagem do que a chegada. Ainda que fixem um destino final desde o momento em que iniciam seu deslocamento, eles acabam se entregando aos prazeres da descoberta de si mesmos. Essa busca também se traduz em planos estupendos, amplos e, por vezes, estarrecedores. Gatlif domina a técnica e a utiliza em prol da narrativa, sem maneirismos desnecessários que possam afetar a organicidade das andanças de Zano e Naïma. Infelizmente, seus filmes não encontram muito espaço no circuito comercial brasileiro, o que encobre uma carreira que já conta com mais de treze longas-metragens. Nos últimos anos, apenas esse e Transylvania (idem, 2006) aportaram nos cinemas e, mesmo assim, em poucas salas e por bem pouco tempo em cartaz. Liberté (2009), seu trabalho mais recente, sequer ganhou título em português e, ao que parece, não será exibido nos cinemas. O realizador, portanto, compõe o grupo dos injustiçados em nossas terras, dos quais os espectadores são privados.

No que se refere à intimidade com seu objeto de análise, ele é categórico: “Toda a minha arte é de intervenção; não faria cinema se assim não fosse. Por intervenção quero dizer pelo povo, pela justiça, contra a injustiça. É preciso combater contra os estereótipos. Só conhecendo o povo de dentro — como eu conheço — isso é possível”. Assistindo a Exílios, torna-se muito fácil compreender sua fala e se encantar por um cinema destituído de fronteiras que invade os poros com sua explosão de sentimentos e celebra a procura de dois andarilhos por seus próprios eixos, resultando em júbilo cinéfilo. O filme também sela mais uma parceria do diretor com Romain Duris, iniciada com O estrangeiro louco (Gadjo dilo, 1997) e composta, até o momento, por três filmes. Ele se encaixa bem no papel de músico obstinado por suas origens, e é um dos atores mais recorrentes do cinema francês contemporâneo, também frequente na filmografia de Cédric Klapisch, que sempre o escala como protagonista. O trajeto empreendido por seu personagem lado a lado com a de Azabal também é mnemônico, e exalta sobretudo a intensidade.

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