O castelo animado, uma fábula de tons marcantes

“O coração é um fardo pesado.”

Fiel ao estilo clássico de conceber uma animação, Hayao Miyazaki encanta de novo com O castelo animado (Hauru No Ugoku Shiro, 2004), que também conta com sua maneira toda peculiar de contar histórias que, por mais que aparentem, não dizem respeito somente ao público infantil. Existem lições e reflexões pontuais em seus filmes capazes de torná-los abrangentes a faixas etárias mais elevadas. No caso do longa em análise, o foco está em Sophie, uma garota de beleza notável que acaba vítima de uma maldição e é tranformada em uma idosa de mais de 80 anos. A transformação física a torna irreconhecível para sua família e a faz tomar a atitude de ir embora de casa para algum lugar onde não possa incomodar ou assustar ninguém. Para todos os efeitos, fica apenas a ideia de que aquela linda jovem desapareceu. Em pouco tempo, ela depara mais uma vez com o castelo do título, uma habitação totalmente atípica, que não tem alicerces fincados no solo e, por conta disso, move-se constantemente.

O tal castelo é sempre visto na cidadezinha de Sophie, e correm algumas lendas em torno dele entre os habitantes locais. São histórias provenientes da incerteza acerca de seu dono, fabulações de quem não conhece bem o objeto sobre o qual fabula e, na ânsia de interpretá-lo, vai criando histórias que lhe pareçam explicativas. Uma vez sozinha diante do castelo, Sophie conhece de perto o mago Howl, que está sendo perseguido por espíritos malignos. Ao mesmo tempo em que foge dessa perseguição, ele ajuda Sophie quando ela ainda é uma garota e, mais adiante, eles se reencontram quando ela já se tornou uma senhora. Inicialmente, a relação dos dois é cercada de uma aura de mistério, já que pouco sabem um do outro. Sophie não revela muito de si e Howl, por sua vez, costuma sair sem dar explicações sobre para onde vai.

Aos poucos, o amor vai nascendo entre eles, sempre de forma discreta, tanto que eles não se dão conta a princípio, e mantêm uma relação de patrão e empregada, já que Sophie se resigna a cuidar do castelo como se fosse uma espécie de governanta. Seu companheiro de conversas é o fogo que impulsiona o nomadismo do castelo e responde pelo funcionamento dos demais eletrodomésticos dali. Esses e outros elementos demonstram o quanto é essencial, nas histórias de Miyazaki, a suspensão da descrença. O diretor gosta de criar mundos onde tudo pode ter vida e os acontecimentos mais improváveis podem vir à tona. Ao mesmo tempo, ele coloca em discussão vícios e valores que pertencem ao mundo real e dimensionam o público para um enredo que vai além do simples entretenimento. Cada ato dos personagens é representativo nesse sentido e traz consigo sentimentos como orgulho, inveja, vaidade, medo, timidez e covardia. Assim, por mais que os ambientes e as situações sejam surreais, elas trazem um componente de identificação, pois nos vemos capazes de atitudes semelhantes.


À capacidade de criação de mundos de Miyazaki se soma o fato de estarmos diante de uma produção japonesa, o que tem seu peso. As sociedades orientais, de um modo geral, têm concepções distintas das ocidentais sobre vários aspectos, e isso se traduz em diálogos ou atitudes que nos parecem estranhas, mas se adaptam perfeitamente ao contexto em que os personagens foram criados. Assim, O castelo animado, bem como outros trabalhos do realizador, ocupa uma posição limítrofe entre o pensamento oriental e o seu modus operandi. Seja como for, é desnecessário delimitar até onde vai cada um desses aspectos. Assistir a um Miyazaki é, antes de mais nada, uma experiência de fruição visual que esconde uma série de questões em seus cenários, como um quadro que, a cada vez que se vê, parece novo e suscita mais interpretações. Por mais que pareça, o cinema do diretor não entrega tudo mastigado: há sempre um espaço para as inferências pessoais do espectador.

Se comparado ao seu filme anterior – A viagem de Chihiro (Sen to Chihiro no kamikakushi, 2001) – O castelo animado perde no quesito peripécias, mas se mostra igualmente luminoso e reflexivo, muito acima de boa parte das animações de seu tempo, um amontoado de piadas e tipos chapados que se dissipa da memória pouco tempo após o final da sessão. Em Miyazaki, reina o permanente. Suas histórias são construídas com a preocupação de aliar a concepção imagética a um conteúdo moral, sem necessariamete recorrer a expedientes de ordem didática. A frase que abre esta crítica é um exemplo de constatação a que se pode chegar no epílogo de O castelo animado. Ela é proferida por Sophie, ao se dar conta do quanto viver é experimentar um turbilhão de emoções com as quais nem sempre se consegue lidar ou entender facilmente. Seu relacionamento com Howl não é mais uma história de amor qualquer. Pelo contrário, é a mostra de um diretor tarimbado que, mesmo partindo de uma premissa esgarçada, consegue surpreender e encantar, mostrando que um conteúdo antigo pode sempre se prestar a novas formas.

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