O estado das coisas e a leitura aprofundada do tédio


Expoente do cinema alemão há algumas décadas, Wim Wenders ajudou a ornar essa arte com coroa de louros, graças a filmes que ultrapassam o rótulo de entretenimento e mergulham no abismo profundo que é a alma humana. O diretor é daqueles que tem, pelo menos, quatro clássicos em seu currículo. Partindo-se do princípio que o mínimo “exigido” de cada cineasta seja uma obra-prima, ele vai além dessa “imposição” e nos lega mais de um filme que, paradoxalmente, pode ostentar esse título. Um deles é O estado das coisas (Der Stand der Dinge, 1982), um intenso estudo do sentimento que atravessa a humanidade há tempos, mas que parece estar mais em voga desde a era moderna: o tédio. Com base nesse substrato não tão palatável, ele funde imagens tristes e poéticas com uma metalinguagem das boas. Para isso, coloca em cena a figura de um cineasta, vivido por Patrick Bauchau. Friedrich está em processo de filmagens de um novo trabalho, mas uma série de problemas passa a rondar essa fase da concepção de seu filme.

A primeira sequência de O estado das coisas já dimensiona o espectador naquele mundo ilusório que o cinema é capaz de criar. Um grupo de personagens caminha por espaços abertos e claríssimos, e o tempo em que eles estão parece o futuro, o que também se denuncia pelas roupas que usam. Nos minutos seguintes, percebe-se que aquele é o filme dirigido por Friedrich, que grita “Corta!” e suspende a interpretação daqueles atores. Mais adiante, descobrir-se-á que a produção desse filme está envolta em circunstâncias adversas, que delineiam um percurso na corda bamba que pode ser lido como uma tragédia do próprio cinema. A postura de Wenders diante da história que entrega é a de dramaticidade profunda, numa fusão de discurso metalinguístico com uma análise do tédio que atravessa a condição humana. As dificuldades enfrentadas por Friedrich, de certa maneira, sintetizam a caminhada penosa que um artista pode enfrentar.

O ritmo impresso por Wenders ao filme é lento, e quase nada acontece ao longo de 125 minutos. Portanto, é preciso uma cera dose de paciência para acompanhar esse trabalho, que demonstra uma característica que aparece em outros filmes dele, como Asas do desejo (Das Himmel über Berlin, 1987), o outro clássico de sua carreira. Essa maneira de apresentar tudo, sempre sem pressa, é bastante pertinente para a temática abordada aqui. Diante do tédio, nada parece fazer sentido, e o estado de todas as coisas parece ser o de paralisia, bem como o de quem está entediado. Do tédio, surge o marasmo , que corrói a alma e embriaga o indivíduo de uma sensação de falta de saída e motivação. Parece ser esse o caso dos envolvidos na filmagem do longa apresentado dentro de O estado das coisas. A câmera que filma a câmera que filma apresenta os ambientes em que os vários atores, atrizes e agregados se encontram, e perpassa cada um deles como se fizesse uma radiografia de seus interiores. Ocupados com seus próprios problemas, eles exibem um estado de dormência e calmaria excessiva, que traduz um espírito combalido pela dor da existência, cheia de ônus e bônus. Essa ressonância filosófica é cara a Wenders, que se utiliza dela aqui para gerar um grande incômodo. A tal lentidão do filme pode ser, ao mesmo tempo, maravilhosa e irritante, mas nunca é capaz de deixar a indiferença, já que a cada um cabe um posicionamento diante da esfera de melancolia e densidade apresentada pelo diretor. Assim como em outros filmes uma rotação bastante vagarosa pode feri-los de morte, em outros ela pode ser essencial e válida, como é o caso desse.



O grande problema enfrentado por Friedrich é o desaparecimento do produtor de seu filme com os negativos durante as filmagens em Portugal. Desorientado, ele passa a enfrentar séria dificuldades para concluir o seu projeto, e tenta encontrar soluções para o fato. Enquanto isso, sua equipe procura viver os dias de trabalho com a esperança (?) de que tudo tomará o seu devido lugar. É quando as lentes de Wenders apontam para vários cômodos, e passamos a testemunhar diálogos simples e até banais entre vários personagens, incluindo uma menina com ideias bastante curiosas para alguém da sua idade, demonstradas à sua mãe. Em meio a esse caos silencioso, transborda o desejo de conclusão de planos que foram traçados. O estado das coisas é também um filme sobre a incompletude, sobre a incapacidade de colocar um fim naquilo que se começou, e nas incongruências entre desejo e realidade. Tudo é pautado por uma leitura exegética, que chama ao confronto do público. Em certos momentos, surge a vontade de interferir no andamento do filme e mudar os rumos dos acontecimentos, que são bem poucos.

No que tange aos aspectos técnicos, o filme também exibe muitas qualidades, a começar pela já citada abertura, que traz um plano esplêndido que focaliza a locação escolhida por Friedrich para ambientar seu trabalho. De improviso, surgem os créditos do filme de Wenders, e começa ali a discreta fusão entre a realidade da filmagem e a filmagem da realidade, sem que as fronteiras entre ambas possam ser efetivamente delimitadas. É como se o diretor estivesse corroborando a frase de Orson Welles sobre essa arte, na qual ele diz que o cinema não tem limites e é sempre um fluxo constante de sonho. O estado das coisas é esse devaneio, que se instala na mente e não pede licença para continuar ali. Como de hábito, surgem ressonâncias filosóficas que arrebatam e lancinam, e elevam o cinema praticado pelo diretor a instâncias de poderosa reflexão e inquietude. Pode parecer um grande oximoro, mas a proposta de imersão no tédio que ele traz é uma possibilidade de estremecer o espectador, e apontar para sua letargia que precisa ser removida. A crítica sempre valorizou muito o filme, e ele acabou sendo premiado com o Leão de Ouro em Veneza em 1982, demonstrando que o júri responsável pela decisão soube pesar bem as suas qualidades na balança e laureá-lo de forma cabível. Wenders ainda nos brinda com o encontro com uma trilha sonora estonteante, composta por belos fados que cantam a tristeza, o desespero e as interdições que a vida impõem e que acompanham a trajetória de contornos desalentadores percorrida por Friedrich, que se vê cada vez mais envolto por uma aura trágica.

Em sua crítica ao filme, publicada no jornal português Expresso, João Lopes afirma que se está diante de um longapmetragem religioso, que apresenta o cinema para o cinema de forma dolorosa, sem se ater ao poder de encantar a plateia que essa arte exerce. Seguindo essa perspectiva, ele se associaria a títulos como Crepúsculo dos deuses (Sunset boulevard, 1950), que também examina o lado sombrio e nada desglamourizado do cinema, com suas lutas inglórias e pequenas sucessões de fracassos. Ele também cita O desprezo (Le mépris, 1963), para atestar que todos são filmes que trazem o conceito de falência desse fazer artístico, mas para o qual ainda pode existir mudança. A religiosidade desses filmes estaria não só em apontar essas constatações, mas em deixar brechas para a crença em que há ainda um meio de escapar a esse marasmo aparentemente infinito. As ondas vão e vêm, tentando naufragar as certezas, mas Friedrich permanece ali, como um atalaia, procurando conduzir com força aquela nau de sensatos, que ainda respira a arte como forma de sobrevivência a seus medos e angústias. Quando chega à sua sequência final, uma reviravolta toma conta do filme, e resume o árduo trajeto percorrido pelo protagonistas, em que um violento acerto de contas transforma tudo em um longo lampejo faiscante que se apaga.

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