O peso do preconceito investigado em No calor da noite
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Uma vez na delegacia, o tratamento que recebe do delegado é bem parecido, e essas duas passagens do filme de Norman Jewinson bastam para causar indignação no espectador que não partilha de uma perspectiva tão abjeta. Alguns minutos depois, porém, esse sentimento pode ser substituído pelo de satisfação, já que Virgil se apresenta como um importante homem da lei e um perito em homicídios, examente o profissional de que Bill Gillespie (Rod Steiger, perfeitamente intratável), o chefe de Polícia, necessita. Sem alternativa, ele dá o braço a torcer e passa a contar com as observações e sugestões do detetive, que tem um faro apuradíssimo para investigações e logo conquista a confiança da viúva, que exige sua liderança para que o autor do crime seja encontrado e punido. O problema é que Bill e seu subordinado não são os únicos a lidar mal com a presença de Virgil: o preconceito está espalhado pela cidade e vencê-lo pode ser mais difícil do que contrariar uma das leis da Física.
A cidade fica no Mississippi, ao sul dos Estados Unidos, reconhecidamente um território em que hostilizar negros soa como a atitude mais normal do mundo, quase um senso comum entre os brancos. Vários filmes têm abordado essa temática ao longo dos anos, alguns com mais ou menos sucesso - veja-se o caso do pavoroso Crash - No limite (Crash, 2004) para exemplificar a segunda possibilidade. O próprio Poitier traz em seu currículo outros personagens em alguma situação de enfrentamento desse tipo de preconceito, e acabou se tornando um nome icônico não necessariamente por levantar um bandeira, mas por demonstrar através da ficção que a igualdade é um desejo e um direito de qualquer pessoa. No calor da noite tem a seu favor, além dessa noção claramente exposta, uma trilha maravilhosa, cuja canção-título é entoada por ninguém menos que Ray Charles e apresentada logo no plano de abertura juntamente com os créditos. Os versos apontam, entre outras questões, para a dificuldade de se manter o controle em determinadas situações, algo que Virgil experimenta a cada vez que precisa legitimar seu discurso, pois o que salta aos olhos da maioria de seus interlocutores é a sua melanina.
O talento do protagonista para localizar e interpretar pistas é comprovado em diversos momentos, como a passagem na qual ele percebe que um dos homens mais ricos da cidade tem alguma culpa simplesmente por encontrar o ramo de uma planta típica do lugar em seu carro. Enquanto isso, Bill e seu parceiro se mostram incrivelmente desatentos, preferindo não criar nenhum tipo de mal estar com alguém tão poderoso. A postura resoluta de Virgil é encarada como uma ofensa para ele, que formaliza todo o seu racismo ao questionar se o detetive estaria certo o tempo todo. É por meio de diálogos como esse que No calor da noite exala sua força. O longa, aliás, teve duas continuações, ambas igualmente estreladas por Poitier. No ano seguinte à sua realização, concorreu em sete categorias do Oscar, faturando as de filme, ator (que acabou indo para Steiger, um equívoco de distribuição, pois basta assistir ao filme para notar que é um coadjuvante), som, edição e roteiro adaptado. Felizmente, a Academia não é só injustiça, embora seja mais comum os membros premiarem produções imerecidamente, e o supracitado Crash - No limite é apenas um exemplo na categoria de melhor filme.
Alguns detalhes cruciais da narrativa de No calor da noite devem ser salvaguardados de quem ainda não assistiu o filme, como outras sacadas de Virgil que contribuem decisivamente para o andamento da investigação. Com seu carisma inegável, Poitier faz de seu personagem um herói totalmente plausível, que defende suas convicções, silencia comentários tacanhos, e denotam a fragilidade de pensamentos que associam tom de pele a alguma capacidade cognitiva e/ou de realização. Então, um iniciante, o falecido e respeitadíssimo crítico Roger Elbert teceu muitos elogios ao longa e o incluiu em sua lista de dez melhores filmes do ano. Para alguns, a trama ficou datada. Para este que vos escreve, segue atual até demais, visto que o passar de tanto tempo ainda não derrubou inteiramente tamanha ignomínia.
8/10
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