Medianeras: Buenos Aires na era do amor virtual ou o caminhar de dois solitários

“[...] Eu ando pelo mundo e meus amigos, cadê?
Minha alegria, meu cansaço
Meu amor, cadê você?
Eu acordei, não tem ninguém ao lado [...]”


A nítida sensação que se tem, a maior parte do tempo, é que a solidão é o grande fardo das relações humanas da contemporaneidade. Ainda que paradoxal, esse detalhe atravessa as redes de contatos dos indivíduos de tal forma que, hoje, estar em contato não é estar junto, necessariamente. Cumprimentamos amigos, enviamos mensagens, deixamos recados nas redes sociais, telefonamos para fazer convites, redigimos e-mails, mas estamos longe. Gustavo Taretto, estreando na direção de longas-metragens, captou esse espírito angustiante do nosso tempo e concebeu Medianeras: Buenos Aires na era do amor virtual (Medianeras, 2011), uma radiografia desiludida da capital argentina que pode ser estendida, no mínimo, para qualquer metrópole do mundo. Sob suas lentes atentas aos detalhes arquitetônicos da cidade, a nossa procura por contato palpável ganha dimensões tragicômicas e revela manias e profundos desconfortos de dois protagonistas com a condição (temporária?) de transeuntes solitários em suas caminhadas pelas próprias vidas.

Mariana (Pilar López de Ayala) e Martín (Javier Drolas) habitam edifícios localizados numa mesma rua e têm um rotina bastante comum, mas nunca chegam a se encontrar, malgrado a enorme proximidade entre ambos. Cada um a seu tempo, eles nos são apresentados, sendo narradores de si mesmos e evidenciando suas carências e suas tentativas de se colocar no mundo. Ele não se conforma com o crescimento desordenado de Buenos Aires e enumera alguns dos problemas causados pela arquitetura mal planejada da cidade, que contribui decisivamente para o isolamento de seus habitantes. Recém-saído de uma depressão, ele constantemente flerta com a doença e revela outras, decorrências de sua eterna insatisfação. Ela é uma artista plástica em uma lida dolorosa com o fim de um relacionamento, e seus poucos sorrisos são a manifestação externa de uma agonia quase silenciosa e de uma solidão que já existia quando ela ainda namorava.

Devidamente apresentados em seus pequenos e grandes desastres, os personagens dessa agridoce crônica urbana são capazes de despertar enorme identificação, comprovando a universalidade do longa de Taretto, cuja experiência pregressa inclui dezenas de curtas. Mesmo jovem e, talvez, por isso mesmo, ele é exemplar em flagrar os laços desatados que assinalam as relações interpessoais sem recorrer a caricaturas ou a tipos pré-fabricados. Mariana e Martín são humaníssimos em sua falta de habilidade consigo mesmos e com os outros ao seu redor, e seus respectivos apartamentos funcionam, ao mesmo tempo, como refúgio e masmorra para seus interiores inquietos e desacompanhados. Por vezes, eles fazem graça do próprio sofrimento, como quem tenta sobreviver às suas mazelas rindo de si mesmos, numa espécie de diálogo admirável com a obra de Woody Allen, um especialista nesse terreno. A propósito, um cultuado exemplar da filmografia do diretor, Manhattan (idem, 1979), é citado explicitamente na história, sendo um dos filmes favoritos de Martín.


A cada passo incerto que dão, os personagens também se aproximam bastante dos versos da canção Esquadros, entoada por Adriana Calcanhotto, que também é pródiga em refletir o estar solitário por entre as gentes. O mundo é uma imensidão, somos um em tantos, e tantos cabem dentro de nós. Onde estão nossos amigos? Com quem compartilhar as alegrias e as tristezas, a euforia e o desalento? Estamos à procura de quê? Qual a fonte da nossa completude? São perguntas demais e respostas de menos. Enquanto há vida, há dúvida. Os mortos não podem questionar, seu tempo já passou. O momento de ser consumido pelas indagações é este. Mariana e Martín experimentam esse momento sem poder se livrar das obrigações da vida comum. Afinal, ninguém pode parar. Uma vez parados e devotados aos nosso próprios questionamentos e fantasmas, somos ejetados do convívio social, ainda que todos tenham seus próprios demônios – isso não é exclusividade de ninguém.

Taretto reafirma sua predileção pela temática da solidão em Medianeras..., que pode ser lido como um alargamento de sua produção precedente. O realizador também gosta de centrar suas tramas em Buenos Aires, cidade na qual sempre viveu e que, segundo o próprio, aprendeu a entender e aceitar com o tempo. Portanto, ele fala sobre o que conhece de perto, colocando o coração no que faz e transpira uma verossimilhança desconcertante. É como estar diante de um espelho mais ou menos nítido, a depender de quem olha para ele. A narrativa de seu longa demonstra que o mundo de hoje está cheio de ferramentas que auxiliam na realização de atividades cotidianas, mas essas facilidades geram o afastamento progressivo do contato real como efeito rebote. Quanto mais modernos, mais solitários, enfim. E segue a procura por alguém, em caminhos errantes e tristes. Nas linhas e curvas de Buenos Aires, Taretto nos leva a um desagradável passeio pela incomunicabilidade e pelo truncamento afetivo, a síndrome de um século de movimento permanente e conflitos psicológicos obliterados – o que não significa, nem de longe, resolvidos.

Tanto quanto Mariana e Martín, as vitrines e demais prédios da cidade também são personagens da história, erguendo-se impassíveis ante a agonia internalizada desses jovens. Ela é obcecada por manequins e pelo clássico jogo Onde está o Wally?, que consegue encontrar em qualquer cenário, salvo quando esse cenário é a cidade. Não pode ser mero acaso. A metrópole é um mar de gente, e o isomorfismo crescente entre os indivíduos torna difícil a empresa de encontrar alguém na multidão. Ele se fecha em jogos eletrônicos e luta por algumas horas de sono, normalmente interrompidas para mais horas em frente a uma tela de computador. O ensaio de romance que vivem é, antes de mais nada, o grito surdo de dois desesperados. É o desejo de amparo, de conforto para o coração. Em um universo tão vasto, acertar nas escolhas sentimentais equivale a ser premiado na loteria, e requer apostas mil. Mas não se pode deixar de viver ou, ao menos, sobreviver. Um simples olhar seguido de um abraço apertado, lá pelas tantas, pode ajudar muito nesse sentido. Cadê você?

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