QUINTETO DE OURO - PLANOS SEQUÊNCIA

Conforme o crítico francês André Bazin, o plano sequência acontece quando a câmera filma um longo período de ação ininterrupta, caracterizando uma única tomada. Essa simples definição permite compreender o que muitos diretores já fizeram ao longo da história do cinema, e as intenções que levam a essa escolha são as mais variadas: podem ir desde um exercício formal de estilo a uma adequação a um tema abordado. Para o mesmo Bazin, o plano sequência confere mais realismo ao cinema, detalhe que ficaria prejudicado com os vários cortes da montagem que acontecem tradicionalmente nos filmes. Seja como for, é um recurso difícil de ser utilizado, pois qualquer falha na captura da cena obriga a começar tudo de novo, e não se pode esquecer que filmagens sempre vão significar gastos. Cada vez que vejo um plano sequência, um dos meus principais pensamentos é justamente no grau de dificuldade que ele apresenta, já me levando a considerar o diretor corajoso e arrojado.

Essa lista não foi das mais difíceis de fazer porque eu tinha bem claros na cabeça quase todos os integrantes, filmes que me marcaram e não foi somente por tal detalhe. Mesmo porque, um filme em que a técnica se sobrepõe à trama ou ao elenco é um filme sem alma. Cinema é diversão sim, mas também é uma história bem contada e capaz de mostrar outros mundos, tanto os físicos quanto aqueles psicológicos onde habitam os personagens. A memória, porém, é traiçoeira, então foi dar uma pesquisada em títulos que poderiam constar da minha seleção, bem como numa boa definição do tema, que foi devidamente parafraseada no parágrafo anterior. E boa parte dos citados nessas outras listas são os mesmos que eu já queria para a minha. Ficou uma relação eclética de títulos, congregando diretores diferentes e merecedores de atenção. Como não consegui trazer os vídeos dos planos para o blog, segue junto a cada textinho o link para conferi-los. Assim se formou o último Quinteto de Ouro de 2017.

1. O jogador (Robert Altman, 1992)


A longa sequência inicial desta crônica irreverente sobre os bastidores de Hollywood oferece um panorama do modus operandi dessa indústria quase centenária, cujos peões até podem se mover nas mais variadas direções, mas ainda assim a base do jogo permanece. Consoante o aparecimento dos créditos na tela, a câmera vai e vem sem se deter em nenhum personagem específico, ainda que o protagonista seja Griffin Mill (Tim Robbins), sujeito arrogante e espertalhão muito à vontade na posição de produtor que seleciona quase a seu bel prazer os roteiros que podem ser transformados em filmes. O jogador é um paraíso de metalinguagem, com nomes famosos que desfilam aqui e ali em vários momentos da narrativa. E nesse já citado começo, Altman nos leva de dentro para fora, abrindo com um quadro que serve de fundo decorativo em uma das salas do estúdio onde Griffin trabalha, e saindo dali para seguir ao ar livre com muitos diálogos sobrepostos que revelam intrigas, desejos e intenções, uma conhecida marca do saudoso cineasta, que se foi há mais de uma década. (https://vimeo.com/169425300)

2. Boogie nights - Prazer sem limites (Paul Thomas Anderson, 1997)


Para cinéfilos, é informação velha, mas não custa avisar aos demais seres humanos: o cinema de Robert Altman sempre foi uma fonte de inspiração para Paul Thomas Anderson. Ele inclusive chegou a trabalhar como assistente de direção do falecido realizador, e soube emular o cinema de seu mestre sem deixar de demonstrar assinatura própria. Uma das intertextualidades entre os filmes de ambos está justamente no recurso do plano sequência, que em Boogie nights também é usado na abertura do filme, quando a plateia é levada para o universo licencioso da indústria pornográfica, mais especificamente a setentista, quando esse setor do mercado estava em alta. Alguém aí também notou a metalinguagem? Pois é, ele também está presente aqui, mas com o toque de Anderson, que não deixa confundir os filmes. Em alguns minutos de ação contínua, vamos conhecendo os excessos de uma década que representou um ponto de virada nos costumes e impregnou Hollywood de uma atmosfera de ousadia. A quantidade enorme de figurantes se movimentando nesse plano é apenas um dos itens que revelam a complicação que certamente foi elaborá-lo. (https://vimeo.com/169371357)

3. Arca russa (Aleksandr Sokúrov, 2002)


O caso mais impressionante de todos os planos sequência citados na lista, Arca russa é um filme totalmente realizado com esse recurso. Foram necessários meses de ensaio para que Aleksandr Sokúrov chegasse ao nível de sincronia e fluidez exigidos para narrar um passeio pelo museu Hermitage, situado em São Petersburgo, um dos maiores do mundo. A riqueza histórica é apresentada por uma entidade fantasmagórica, que conduz o público por corredores, salas e antessalas onde os detalhes importam e contam a história da Rússia entre os séculos XVIII e XXI. Só de imaginar o esforço e a técnica para dar conta de tal intenção, vêm o cansaço e a surpresa. Os números são impressionantes, e apenas três deles são suficientes para ilustrar o tamanho do empreendimento de Sokúrov: sete meses de ensaio e três mil figurantes espalhados por 35 salas do imenso museu. É bom que se diga que o filme não é apenas sua técnica: o roteiro valoriza a história e a arte, e consegue envolver pela beleza visual e por aquela que se enxerga nas entrelinhas. Faz uns oito anos que vi e ainda hoje está em minha memória. (https://www.youtube.com/watch?v=ZV1kphEEXn8)

4. Filhos da esperança (Alfonso Cuarón, 2006)


Na seara dos longas de ficção científica, Filhos da esperança ainda é um exemplar subestimado. Com sua narrativa seca e sem firulas, o enredo visita um futuro desalentado, no qual a humanidade é infértil e não nasce um bebê há 18 anos. Nesse cenário, surge uma jovem grávida, que rapidamente se torna alvo de gente interessada em roubar o bebê. Há duas cenas com plano sequência, e ambas estão entre as mais tensas de todo o filme, retratando partes da fuga da menina, sempre acompanhada por Theodore (Clive Owen, fantástico), espécie de guardião que também tem seus desafetos. O primeiro plano acompanha os personagens em um carro sendo perseguidos, e a câmera os mostra de vários ângulos, sendo uma das sequências mais trabalhosas de realizar segundo Cuarón. A outra sequência é uma correria ao ar livre em que a luta para escapar se dá em meio a passagens por corredores e cômodos de um prédio abandonado, e as balas vêm de todos os lados em ambas as situações. (https://vimeo.com/169371360)

5. O cavalo de Turim (Béla Tarr, 2011)


Inspirado em um episódio contado pela História a respeito de Nietszche, o longa de Tarr é assinalado por uma infinidade de tempos mortos. Segundo se conta, o filósofo alemão teria intervindo numa situação de maltrato a um cavalo, admoestando o homem que atentava contra o animal e sendo açoitado no lugar dele, um acontecimento do qual jamais conseguiu se recuperar. A câmera do realizador vai atrás do tal cavalo, combalido por dias e tratado por uma jovem que mora com seu pai em uma casa isolada de tudo, onde o silêncio é uma constante tanto pelo ambiente que os circunda quanto pelas raríssimas palavras que eles trocam um com o outro. A bem da verdade, a câmera se move bem pouco, e os longos planos se enfileiram uns atrás dos outros, tornando o filme um exercício de paciência em tempos de hipervelocidade. Para quem se dispõe a dar uma chance para a meditação oferecida pelo cineasta húngaro, o resultado pode ser altamente compensatório. (https://vimeo.com/169371365)

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