Toni Erdmann ou os muitos lados dos humanos e suas relações

Maren Ade faz algumas escolhas inusitadas ao longo de Toni Erdmann (idem, 2016). Já em seus primeiros minutos, conhecemos o criador do personagem-título, um senhor na casa dos 60 anos que forja um irmão para receber uma encomenda e logo em seguida admite ao entregador que os dois homens são ele mesmo. Sua maneira extravagante de agir e se relacionar com o mundo demonstra uma riqueza de percepção que a maioria das pessoas ao redor parece não ter, e as esquisitices praticadas por ele vão fazendo do longa uma história menos comum sobre as muitas facetas dos indivíduos e suas complicações ao se relacionar. Por outro lado, as famílias normalmente têm um membro palhaço - aquele tio da piada natalina do pavê é um exemplo - e Winfried (Peter Simonischek, espécie de Tarcísio Meira alemão) preenche essa cota. 

A relação enfocada é com sua filha, Ines (Sandra Hüller), executiva preocupada em garantir o fechamento de um bom negócio com uma empresa romeno. Ela não pode fazer feio diante do homem, e Winfried representa uma ameaça ao seu sucesso com suas intervenções fora de hora, sobretudo quando se traveste de Toni Erdmann e insiste numa encenação constrangedora para Ines. À medida que o espectador vai acompanhando o desenrolar dessa relação, drama e comédia se revezam habilmente no roteiro da própria Ade, cuja filmografia pregressa continha, até então, quatro filmes. A caracterização de Toni é ridícula: uma peruca preta de fios mal penteados e uma dentadura pavorosa que torna hilária qualquer frase saída de sua boca. Mas ele é capaz de mostrar tanto um lado piadista quanto sério sob o disfarce, resultando em uma figura carismática, em contraste com a postura sisuda adotada pela filha.

Por muitas vezes, percebe-se a relação de Ines e Winfried como um intenso morde e assopra. Ela não embarca em seu jeitão bem humorado e solta frases um tanto cruéis quando perguntada com simplicidade sobre estar ou não feliz. Ele, incapaz de reagir na mesma linha, prefere lançar-lhe um olhar conformado, para na cena seguinte tudo parecer perfeitamente normal de novo entre os dois. É assim durante sua visita a ela, até que os humores de ambos definitivamente não se conciliam e ele parte para casa. Seu retorno já é como o insólito Toni Erdmann. Como boa escritora e observadora do ser humano (só assim para justificar a riqueza da trama), Ade oferece camadas de seus personagens, e os desempenhos de Simonischek e Hüller demonstram compreensão desse olhar distante de enviesamentos. Lá pelas duas horas e pouco de filme, uma das colegas de trabalho de Ines - hierarquicamente subalterna - comenta sobre a diferença entre a profissional e a mulher, bem como outro momento anterior revela Ines como alguém capaz de atitudes imprevisíveis. É ou não um banho de humanidade?


Winfried, por sua vez, não é um poço sem fundo de alegria e bom humor. Existe nele uma certa mágoa resignada com o comportamente arredio da filha, e o passado deles é somente acenado em uns diálogos. Não está tudo mastigado conforme a tendência hollywoodiana. Na verdade, é uma das características da chamada Escola de Berlim, movimento cinematográfico que remonta à década de 70. Mais um ponto a favor de Ade, que se esquiva do lugar comum da jornada edificante de pai e filha diametralmente opostos, embora haja ótimos títulos que se enveredam por tal possibilidade. Acaba que Toni é uma eficaz válvula de escape que, de alguma forma, reconfigura seu contato com Ines e corrói em boa parte o verniz arisco da executiva, permitindo lampejos de descontração e até uma sequência de ares confessionais em que ela canta Whitney Houston após a insistência do pai, que a segue ao piano. A cena já tem vaga cativa na lista de melhores do ano por seu alto teor catártico, sobretudo quando se pensa no que tinha sido desenhado até ali pelo espírito inventivo e sentimental de Ade. 

Toni Erdmann foi um dos queridinhos do 69º Festival de Cannes, de onde saiu com o prêmio da crítica. Exibido num dos primeiros dias, repercutiu ao longo de toda a mostra e mesmo sua longa duração não chega a tornar a narrativa enfadonha, como de outros filmes que erram a mão na prolixidade e não justificam mais de 120 minutos. Por investir em momentos cômicos que aliviam o peso da relação tumultuada entre Winfried e Ines, a produção também ajuda a "combater" o mito de que alemães não são bem-humorados ou avessos a ironias. Eu mesmo conheço um alemão que contradiz essa hipótese, em que pese o fato de já estar vivendo em solo carioca há pouco mais de 1 ano. No fim das contas, Toni é aquela porção de ridículo de que todos nós precisamos em meio às exigências carrancudas do dia a dia. Daí a legitimidade do questionamento: Você é mesmo um ser humano?

8/10

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