Anomalisa e algumas constatações incômodas sobre nossa humanidade

Retratos cinematográficos sobre amor, solidão e desalento existem aos montes, mas poucos têm a alma exalada por Anomalisa (idem, 2015). A primeira animação assinada por Charlie Kaufman – em parceria com Duke Johnson – é mais um triunfo em sua carreira, e houve críticos que se referiram a ela como o filme mais humano do ano em que foi lançado. De fato, os personagens terem sido concebidos através da conhecida técnica do stop motion é mero detalhe visual, já que suas emoções e atitudes são facilmente reconhecíveis como potenciais e provenientes de qualquer um de nós. E, se a sinopse carrega uma inesperada simplicidade para os padrões do realizador e roteirista, seu desenvolvimento não é tão corriqueiro assim, mesmo que, no fundo, seja mais acessível que outras narrativas já saídas de sua mente criativa e borbulhante. 

Em sua primeira sequência, Michael Stone (voz de David Thewlis) está em uma avião a caminho de Cincinnati, cidade localizada no estado de Ohio e apelidada de Cidade Rainha. Atente para o sobrenome do protagonista: ele é uma informação nada gratuita e altamente relevante para inferências sobre sua conduta e personalidade, clarificadas à medida que a trama avança. O motivo da viagem, de curta duração, é uma palestra para discorrer sobre um de seus livros de autoajuda, intitulado Como posso ajudá-lo a ajudá-los?, que vem fazendo o maior sucesso. Porém, Michael não se parece em nada com um autor de livros dessa vertente, a começar pelo semblante desgostoso e pela falta de paciência em travar diálogos, mesmo com interlocutores nitidamente amistosos.

A postura estoica diante da vida parece sequela de relacionamentos malfadados de um passado nem tão distante, e o pouco que vai sendo descortinado a seu respeito mostra um homem difícil de conviver, de baixa tolerância a eventos e atitudes cotidianas que muitos deixam passar batidos. Um detalhe que logo chama a atenção e pode incomodar a audiência é o fato de todos os personagens com os quais Michael interage terem a mesma voz, não importando se são homens, mulheres ou crianças. Todos são dublados por Tom Noonan. Esse detalhe nada tem a ver com economia no orçamento do longa (que ficou em 8 milhões de dólares): antes, é mais um indício de como, para seus sentidos, o mundo e as pessoas se tornaram anódinos. E é justamente por conta de um som vocal distinto que seu modo de encarar o outro acaba sendo revolvido.

Hospedado em um hotel voltado para o público de negócios, ele conhece Lisa (voz de Jennifer Jason Leigh), e passa a viver uma situação análoga à de Theodore (Joaquin Phoenix) em Ela (Her, 2013): apaixona-se por uma voz. A única voz distinta em seu universo povoado por gente isomórfica. Diante do belo som que ecoa de sua garganta, pouco importa se se trata de uma mulher desengonçada e até um tanto acima do peso. Esses detalhes desaparecem e ouvi-la se torna um enorme prazer, ainda mais se for entoando os versos de uma velha canção em italiano. Mas é exatamente aí que mora o perigo, porque, nas entrelinhas, observação que qualquer espectador com uma fagulha que perspicácia também pode fazer, Kaufman lança uma acusação sobre Michael que transborda para cada um de nós: idealizações e expectativas são armadilhas. Depois, ainda cobramos das pessoas por elas não serem o que nós (repetindo, nós) esperávamos delas. Elas não prometeram nada e, mesmo que tivessem prometido, uma das especialidades humanas é quebrar promessas.


A bem da verdade, a escolha de Jason Leigh para dublar Lisa foi maravilhosa. A atriz tem anos de carreira e já mostrou seu talento inúmeras vezes, mas esta foi a primeira ocasião em que sua voz foi isolada e houve a oportunidade de perceber o quanto ela é bela e se encaixa com perfeição na personagem. Fica bem fácil de compreender o encanto do pétreo Michael, salvo de sua sistematicidade por um aparelho fonador atraente, por assim dizer. Já fazia sete anos que Kaufman vinha mantendo seus espectadores em compasso de espera por uma nova reflexão sua sobre as relações humanas, e Anomalisa vale essa espera, ainda que, novamente, seu olhar tenaz sobre a questão faça doer.

Seu currículo pregresso é famigerado entre os cinéfilos e cultuado por muitos críticos. Através de sua escrita, já mergulhamos na mente de um ator em Quero Ser John Malkovich (Being John Malkovich, 1999), caminhamos no terreno pantanoso de Adaptação (Adaptation, 2002), ziguezagueamos por recordações ameaçadas em Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças (Eternal Sunshine of the Spotless Mind, 2004) e testemunhamos a metalinguagem complexa de Sinédoque, Nova York (Synecdoche, New York, 2008). Michael é uma nova peça na sua coleção de sujeitos complicados e deslocados, que enxergam a vida como um baile por onde as pessoas transitam mascaradas. É uma metáfora gasta, mas ainda não perdeu a validade. Todos temos que lidar com ela e, ao mesmo tempo, somos responsáveis por ela mas, para gente como ele (sim, não importa nada que Michael não exista no plano real), essa realidade é muito mais caótica.

Lisa é esse sopro de novidade urgentemente bem-vindo, uma anomalia em meio a uma homogeneidade exasperante. A estranheza do título, um aparente trocadilho com a pintura enigmática de Leonardo DaVinci, tem sua explicação em um diálogo simples e lindo, que fala de nossa predisposição (ou da maioria) de rapidamente fazer seu mundo girar em torno do objeto do nosso desejo ou admiração. Michael se propõe a ajudar a ajudar, mas precisa mesmo é ser ajudado. Um dos pouquíssimos senões da obra é chegar ao fim apressadamente, quando poderia tê-lo depurado um pouco melhor. Entretanto, talvez esse desconforto com o encerramento seja a dificuldade em dizer a adeus a Michael, que carrega consigo um pouco de mim e de você, ainda incapazes de lidar tranquilamente com o que outro poderia ser, mas não é.

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