O regresso, uma ode selvagem à sobrevivência

O espetáculo visual é a tônica de O regresso (The revenant, 2015), sétimo exemplar da filmografia de Alejandro González-Iñárritu (que cismou de passar a abreviar o nome do meio, talvez por razões mercadológicas) e o terceiro rodado em língua inglesa. Apenas um ano depois do frenesi gerado por Birdman ou (a inesperada virtude da ignorância) (Birdman or (the unexpected virtue of ignorance, 2014), que "roubou" a estatueta de melhor filme de Boyhood (idem, 2014), ele retorna com mais um projeto ambicioso, porém despojado do cinismo que injetou na saga do anti-herói vivido por Michael Keaton. E, quando se fala que o visual domina a narrativa de seu trabalho em análise, não se quer dizer que a dramaturgia tenha sido negligenciada, mas que ela está envolta em concepções imagéticas extasiantes. 


Numa espécie de filiação ao magnânimo A árvore da vida (The tree of life, 2011) no que tange ao fato de somar cenários que brindam as retinas, o diretor adaptou a história de um comerciante de peles embrenhado com seu exército por florestas gélidas. Após sofrer ataques violentos e repetidos de um urso pardo, ele quase não tem mais forças, nem mesmo para verbalizar algo, e ainda testemunha o assassinato covarde de um ente querido sem poder intervir minimamente. O personagem, já se sabe, é interpretado por Leonardo DiCaprio e se chama Hugh Glass. Sua história de vida impressionante parece mais uma invenção de produtores e roteiristas hollywoodianos, mas a realidade também oferece matérias-primas surpreendentes que o Cinema pode aproveitar muito bem.

Logo nos primeiros minutos, O regresso exibe sua pujança visual e sua técnica apurada com um plano sequência da luta de Glass e seus homens contra a revanche indomável de uma tribo de índios Arikara. Ele, por sua vez, tinha se unido a outra tribo, a dos Pawne, e seu filho é fruto da união com uma das mulheres de lá, mas pouco se sabe a respeito de sua história pregressa além desse detalhe. Aliás, a relação com o filho não é exatamente de muita ternura. Glass se mostra um homem de pulso firme e tenaz, sem muito tempo de manifestar carinho com palavras ou gestos. Escapar com vida daquele ataque é a questão mais importante agora e voltará a ser mais adiante em um filme que versa, antes de mais nada, sobre a urgência da sobrevivência. A cena do confronto exigiu nada menos do que um mês de ensaios para que saísse impecável e pudesse ser filmada em um único take, e o resultado foi dura e cruelmente belo.

Outro fato que já se tornou notório sobre o longa-metragem é a escolha de Iñárritu em filmar tudo com luz natural. Parece um detalhe simples mas, quando se trata de rodar cenas fora de estúdio, uma opção como esse é quase suicida. A equipe ficou totalmente à mercê da natureza, e o trabalho consumiu nove meses da rotina de cada um, inviabilizando alguns planos e convites paralelos feitos a alguns atores. Tom Hardy, por exemplo, teve que recusar um papel importante em Esquadrão suicida (Suicide squad, em pós-produção) porque a agenda de O regresso o impedia de conciliá-lo com qualquer outro projeto. Em compensação, seu desempenho como Fitzgerald, detestável parceiro de Glass, valeu a ele uma indicação ao Oscar de ator coadjuvante, a primeira de sua carreira. Com um sotaque carregadíssimo, de difícil compreensão mesmo para ouvidos habituados ao áudio original em inglês, ele materializa sentimentos detestáveis como mesquinharia e descaso, sendo o maior responsável pela tragédia de Glass.

E quanto a DiCaprio? A discussão que vem se mantendo acesa há alguns anos é a de que a Academia lhe deve um Oscar faz tempo, e ele vem batendo na trave consecutivamente. Palpites e apostas indicam que, dessa vez, vai, e logo esse texto vai se tornar obsoleto nesse trecho, seja por sua premiação ou não. Láureas à parte, sua entrega para viver o explorador nascido na Pensilvânia é digna de aplausos. Exposto a baixas temperaturas, entre outras intempéries, ele deu alma e dignidade a Glass, e sua capacidade de se reinventar como intérprete foi novamente autenticada. Pelo menos desde O aviador (The aviator, 2004), DiCaprio vem trilhando um caminho de amadurecimento profissional, e o auge veio com O lobo de Wall Street (The wolf of Wall Street, 2013). Esse apogeu continua em O regresso, só que agora não mais pelas mãos de Martin Scorsese, realizador dos títulos supracitados. Diretores à parte, ele vem escolhendo a dedo seus trabalhos, e ser um ator criterioso só corrobora sua dignidade. 


Iñárritu também merece elogios pela parte que lhe coube. Os chiliques de sua produção anterior desapareceram, e a maioria de suas escolhas se revelou acertada. Uma das poucas exceções foi a inserção de algumas memórias e delírios de Glass, que nada acrescentam a trama e só lhe conferem um viés espiritualista duvidoso. Mas isso são pequenas gorduras em um oceano, e a força centrípeta é mesmo plenamente exercida pelo protagonista em um filme essencialmente masculino, de desbravadores que não conhecem ou fazem pouco caso de seus limites. Fez muito bem ao realizador mexicano "se curar" da mania de filmar histórias paralelas que se entrecruzam e focalizar homens em circunstâncias que lhes demandam alta resistência. Tem sido assim desde Biutiful (idem, 2010), passando pelo já citado Birdman e seu resto de título longo. 

E, novamente, ele firmou parceria com Emmanuel Lubezki, que fez misérias a cada tomada. Sabe-se lá quanta dificuldade ele teve para lidar com a luz, a neve, as sombras e o sol. A equipe, inclusive, contou com um integrante inédito no universo das filmagens: um meteorologista, que indicava onde estavam os locais com mais neve e onde os raios solares podiam incidir por mais tempo. De qualquer maneira, Iñárritu só conseguia filmar poucas horas por dia. Todas essas curiosidades de bastidores conferem ares hercúleos a O regresso, mas de nada adiantariam para sua qualidade total se não houvesse alma nos personagens, o que acontece com certa frequência em produções grandiloquentes. E a trama em si, é bem simples: não importa tanto o que vai ser contado, mas como vai ser contado. Na verdade, é sempre o que mais importa em uma narrativa, seja fílmica, literária ou pictórica. Aqueles homens sobre cuja face a morte constantemente respira e bafeja, exalam uma vida que insiste em pulsar.

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