O futuro imperfeito de O doador de memórias

O texto a seguir é uma colaboração de Iago do Valle, crítico e amigo pessoal que voltou à ativa depois de um longo período sem resenhas. Essa é a primeira de outras possíveis parcerias entre nós.

Baseado na série de livros futurista de sucesso em vendas nos anos 90, O Quarteto Doador, de Lois Lowry, consiste em quatro livros com protagonistas diferentes, do qual apenas O Doador (The Giver,1993) fora publicado no Brasil, e em razão do lançamento do filme recentemente foi republicado com o título O Doador de Memórias. Dirigido por Philip Noyce, de Salt (idem, 2010), o filme retrata uma pequena comunidade que vive em um mundo onde consideram o ideal de paz, um mundo onde fora tirada das pessoas suas memórias, emoções e sentimentos, como o amor, tristeza, raiva ou ódio.  

Não há mentiras, nem doenças, nem guerras, tudo com o objetivo de gerar uma neutralidade forçada entre todos, e para isso até as cores lhes foram tiradas. Dentro dessa sociedade, uma pessoa é escolhida a dedo entre várias para exercer determinados cargos, o cargo principal e dito mais nobre é o de Recebedor de Memórias, receber e ser encarregado de armazenar memórias do mundo como era antes a fim de poupar os demais habitantes do sofrimento e de tudo que o lembrasse, assim com o objetivo de continuar a guiá-los com sabedoria em seus ideais. De tempos em tempos esta tarefa muda de mãos e o escolhido pela líder da comunidade Chief Elder (Meryl Streep) é o jovem Jonas (Brenton Thwaites), que irá passar por um duro treinamento para provar que é digno da grande responsabilidade junto ao Doador (Jeff Bridges).

Bem, é fato que hoje existem inúmeros filmes com temática futurista semelhante, este ano mesmo tivemos Divergente (Divergent, 2014), que se assemelha em certos pontos com este, principalmente na forma em que as pessoas são escolhidas para suas tarefas e em ambos a um mocinho contra o sistema e uma vilã que dita o certo pelo errado, mas o que se destaca em O Doador de Memórias são suas discussões filosóficas e reflexivas sobre o mundo atual, a humanização e a que ponto se pode chegar para se criar um mundo idealizado como o "certo".  Logo no começo a uma narração em 'off' do personagem Jonas explicando o por que de viverem em uma sociedade isolada do resto do mundo: guerra! E o motivo de não enxergarem as cores e não possuírem sentimentos, isso, culpa de uma substancia inibidora obrigatoriamente injetável todos os dias.

O desenrolar da história toma um peso maior quando os grandes entram em cena, Jeff Brigges e Meryl Streep, ele um recluso solitário do velho mundo e ela uma líder tirana que julga as suas ações pelo bem da comunidade e desdenha o mundo como era.  Nos momentos em que vai recebendo as memórias, de alguma forma inexplicável, pelas mãos do Doador, Jonas explora e sente sensações totalmente novas para ele, seus sentimentos são aflorados e sua noção sobre o mundo perfeito em que vive começa a mudar drasticamente quando percebe que de fato havia beleza e bondade no nosso mundo, e que isso fora tirado deles a força. Jonas acaba por se tornar um rebelde em segredo e a cada sessão com o Doador descobre mais sobre o mundo como era, até que certo dia acidentalmente recebe uma memória que, para ele era algo totalmente desconhecido, uma memória de morte e assassinato, algo que se mostrou totalmente doloroso, confundindo sua mente de que talvez estivessem fazendo o certo em inibir as emoções e bloquear as memórias das pessoas. Mas tudo muda quando descobre, já com a mente aberta e livre da droga inibidora, as atrocidades que eram cometidas em virtude de manter a comunidade equilibrada, como por exemplo, quando alguém fazia algo errado, não era preso, era mandado para uma Cerimonia de Despedida, uma execução, algo totalmente aceito pela sociedade como normal já que desconheciam a morte de tal forma, assim como o controle de natalidade, também, por meio de execução. É a partir deste momento que o personagem Jonas se vê obrigado a livrar a sociedade daquela ilusão.


O filme não possui grandes destaques técnicos nem grandes cenas de ação, mas ha beleza na direção de arte e fotografia, a passagem do preto e branco no começo do filme para as cores de forma lenta e harmoniosa é, de fato, muito bonito, assim como a construção da cidade em edificações quase todas iguais, mas de resto é de uma direção simples, mas segura. Há uma bonita banda sonora ressoante em momentos chave para despertar a emoção no espectador, mostrando flashbacks de bonitas memórias do nosso mundo, especialmente no final do filme, gerando um clímax do tipo ''emocionante para te fazer chorar'', quando ao final, tudo fica bem. Mas mesmo assim ficamos com a sensação de que faltou algo a mais, para um filme com tal proposta, faltou mais aprofundamento, acabou por se tornar muito superficial. Outro ponto negativo foi o desperdício de Meryl Streep, sempre excelente, que mesmo aparecendo pouco, aqui é dona dos melhores diálogos junto com Jeff Brigdes , ao final do filme, onde discutem perante uma cerimônia de despedida de uma personagem (execução), sobre a liberdade e o amor. Ha também a presença de Katie Holmes, como a mãe de Jonas, tão apagada que poderia ser qualquer outra atriz, assim como Alexander Skarsgård na mesma situação, e Taylor Swift, que forma arco romântico com o protagonista. O jovem ator Brenton Thwaites se mostrou muito bem demonstrando forte envolvimento com o personagem.

Por fim, O Doador de Memórias tem seus problemas, ele levanta interessantíssimas discussões filosóficas e de idealismos, mas acaba por não se aprofundar em tais, focando mais na trajetória apressada e no romance de Jonas pelo desmascaramento desta falsa utopia. Mesmo assim é um filme que desperta emoção, apelativa alguns dirão, mas duvido que qualquer um após assistir esse filme não se pegue pensando em como seria um mundo assim, qual seria o preço da paz, e qual o valor de uma memória e principalmente o de uma vida.

‘’ – Nós poderíamos escolher melhor! ‘’
O Doador

.’’- As pessoas são fracas, as pessoas são egoístas. Quando as pessoas são livres para escolher, elas fazem as escolhas erradas, todas às vezes!’’
Chief Elder

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