Um sonho de liberdade e a intensa luta por um recomeço

Geralmente associado a histórias aterrorizantes e assinaladas pelo suspense, Stephen King também é capaz de oferecer um olhar bastante curioso sobre a amizade, uma temática tão universal quanto o medo. Atento à força dos livros desse autor, Frank Darabont elegeu uma de suas obras que aborda o tópico, e concebeu Um sonho de liberdade (Shawshank redemption, 1994), tendo Tim Robbins e Morgan Freeman nos papéis de maior peso. O primeiro surge em cena na pele de Andy Dufresne, um banqueiro cuja vida sofre uma revolução negativa: acusado de ser o assassino da esposa e do amante com o qual ela o vinha traindo, ele é conduzido a uma penintenciária de segurança máxima, sob condenação à prisão perpétua. Uma vez confinado àqueles muralhas que o apartam do convívio com a família e os amigos, escolhe o silêncio como estratégia de autopreservação. 

Mais adiante, surge Freeman, que encarna Ellis Boyd, chamado Red pelos companheiros de longa data que compartilham com ele da realidade de prisioneiros. Ele já cumpriu dez anos de sua pena, e aposta com os velhos amigos que Andy será o homem que vai chorar na primeira noite atrás das grades. Acaba perdendo e a mudez contínua daquele homem começa a instigá-lo, mas ele prefere não se aproximar. Até que um dia o agora ex-banqueiro quebra o silêncio autoimposto e trava o primeiro diálogo com aquele que, depois de um certo tempo, se transforma em seu grande amigo. Em gestos discretos, o sentimento de afeto de um pelo outro vai se desenvolvendo, rodeado por circunstâncias nada fáceis - afinal, eles estão em um dos ambientes mais hostis que existe. A postura reservada de Andy o torna ainda mais visado pelos outros detentos, sobretudo um ruivo no qual desperta interesse sexual.

Com isso, o protagonista precisa aprender a lidar com as situações mais perigosas e se impor diante de homens obstinados e capazes de todo tipo de arroubos violentos. À medida que vai conquistando esse aprendizado, os anos transcorrem e, se a impressão que temos como espectadores é de que de o tempo passa velozmente, a sensação dos personagens é a oposta. Darabont condensa décadas de cárcere em pouco mais de duas horas, o que responde por esse falseamento na percepção do tempo, mas alguns elementos cênicos e dialogais do roteiro adaptado pelo próprio diretor atenuam esse inconveniente aparentemente incontornável. E não é somente a reagir diante das pressões violentas que Andy vai aprendendo, mas a confiar em pouquíssimos amigos e a conservar uma cota de segredo, até mesmo para o público, que descobre a parte oculta de seus planos juntamente com os personagens.

Acima de tudo, Um sonho de liberdade é um filme que trata sobre o quanto é importante não perder a esperança, e a conciliar esse sentimento com uma conduta pró-ativa, lição áurea para qualquer ser humano, independente de suas demais crenças particulares. E, na trilha difícil que Andy percorre, é fundamental ter com quem contar, o que ele encontra em Red, um homem capaz de pequenas negociatas com os colegas e que obtém qualquer material que lhe peçam. Fica nítido o quanto ele gostou de Andy gratuitamente, numa demonstração de empatia imediata, que só não é rapidamente desdobrada por conta da opção inicial de Andy pela distância. Passado esse gelo, podemos enxergar o carinho e a preocupação de um com o outro, e um desejo de ver o mundo externo de novo, mesmo que seja para morrer logo em seguida. 


Mas, entre eles, há uma diferença básica: enquanto Andy persegue seu objetivo de deixar a cadeia, por sua consciência limpa, Red sabe que fez por onde estar ali e se restringe a testemunhar timidamente em seu favor a cada dez anos, quando é perguntado se acredita já estar regenerado e pronto para a inserção social. Suas palavras não convencem os diretores do local, que carimbam com tinta vermelha "REJEITADO" ao pedido de absolvição do restante da pena. Nesse sentido, a convivência com Andy lhe faz bem, por injetar pouco a pouco um sentimento mais intenso de busca pela liberdade; ao mesmo tempo, Red tem medo da esperança, dizendo para o amigo que se trata de um perigo. Certamente, houve muitos outros casos como o de Andy e o coração de Red ficou desacreditado, um processo comum e do qual o ser humano é passível. Ainda assim, os dois não chegam a ser polos antagônicos, bem como seus intérpretes, que oferecem uma bela sintonia em cena e entregam excelentes desempenhos. Robbins fez seus melhores trabalhos nos anos 90 e, no mesmo ano de Um sonho de liberdade, foi dirigido por Robert Altman em Prêt-à-porter (idem, 1994), com quem já havia trabalhado dois anos antes em O jogador (The player, 1992) e pouco depois em Short cuts - Cenas da vida (Short cuts, 1993). Essa é a quadra dos seus melhores personagens.

Por sua vez, Freeman dá a razão a quem o considera um dos titãs de sua geração, investindo em uma atuação simples e contida, mas capaz de despertar a simpatia e a solidariedade do público, que vai se tornando íntimo de um homem cujo passado parece ter desaparecido por completo depois de sua ida para a cadeia. Sabe-se apenas que ele está ali por causa de um assassinato, e a maior parte de sua vida foi na condição de detento. Estranhamente, ele foi indicado ao Oscar de melhor ator pelo filme, apesar de ser coadjuvante, enquanto Robbins não foi sequer lembrado para a categoria, mais uma das várias injustiças que a Academia já cometeu. Há outros personagens periféricos que também conferem força à narrativa, como Brooks, que envelheceu na prisão e nem pode imaginar uma realidade extra-muros, e o rapaz que foi o verdadeiro autor do crime de que Andy foi acusado, ao qual ele tenta ajudar, mas que tem passagem rápida pelo lugar. Ambos despertam forte comoção e contribuem para que possamos enxergar os homens antes dos criminosos, com um olhar despido de qualquer determinismo ou estereótipo.

Diante de um filme que toca tão profundamente, é desalentador saber que sua recepção nos cinemas foi irrisória: orçado em 25 milhões de dólares, sua margem de lucro não chegou sequer aos 10%. Hoje, Um sonho de liberdade se encontra à disposição para sessões em casa, que se tornam ainda melhores se forem acompanhadas de amigos queridos, com os quais se pode compartilhar os sentimentos que nascem e crescem dentro de Andy e Red, leais companheiros de muitos anos. Não faltam passagens memoráveis e bem escritas, que se concatenam perfeitamente e são musicadas por uma belíssima trilha - a cargo de Thomas Newman, cujo vastíssimo currículo inclui Beleza americana (American beauty, 1999), Wall-E (idem, 2008) e tantos outros - grandes surpresas à espera do público. Vale ressaltar que Darabont era um diretor estreante à época, e debutou com notável traquejo na função. Até hoje, sua filmografia ainda é curta, mas formada por maravilhosos títulos, aos quais palavras elogiosas são mais que devidas.

10/10

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