Neuroses crônicas revisitadas em Blue Jasmine

Dizem as péssimas línguas que Woody Allen, de tempos em tempos, volta à boa forma, oscilando em intervalos de menor genialidade, por assim dizer. Entretanto, um olhar cuidadoso para seus longas-metragens evidencia que o diretor segue como um dos mais regulares – no melhor sentido do termo – do seu tempo, entregando anualmente obras que ocupam com muita justiça patamares superiores em vários aspectos. Não é diferente com Blue Jasmine (idem, 2013), sua primeira história filmada em São Francisco. Devoto de Nova York, ele voltou a trocar de ares para apresentar Jasmine (Cate Blanchett), uma ex-ricaça que se vê obrigada a abandonar o luxo e passar um tempo morando com a irmã Ginger (Sally Hawkins), habitante desta que é a quarta cidade mais populosa da Califórnia. 

Como Jasmine deixa bem claro em um diálogo com uma passageira no avião que à conduz ao local, ela e Ginger foram adotadas e vieram de famílias diferentes, o que ajuda a explicar as divergências abissais entre as duas. Enquanto a loura de olhos azuis é sofisticada e esnobe, a morena de olhos castanhos se contenta com uma vida mais modesta e escolhe seus amores baseada em critérios rasteiros. Do reencontro inicial entre as irmãs de consideração, surgem, aos poucos, os eventos que conduziram àquela realidade tenebrosa para Jasmine. A essa altura, a narrativa já começou a mostrar que é feita de idas e vindas no tempo, alternando a vida da protagonista como rica no passado e seu presente mais despojado.

Um dos vários acertos de Allen em Blue Jasmine é não investir na obviedade de mostrar as diferenças fundamentais entre esses dois momentos da personagem. De vez em quando, até surgem alguns detalhes que sublinham as características de cada ambiente em que Jasmine está ou esteve, mas eles são consequência de uma trama voltada a acompanhar a sua tentativa de se reinventar, como ela mesma afirma quando procura se defender diante de Ginger por ter mentido para um novo (e rico) pretendente. E, como não poderia deixar de ser, Jasmine é o alter ego da vez do diretor, que volta a se valer de uma persona cinematográfica feminina depois de cinco anos – para quem não se lembra, Scarlett Johansson era uma versão do próprio em Vicky Cristina Barcelona (idem, 2008).


Com essa grande tarefa nas mãos, Blanchett não decepciona. De longe, ela está em um de seus momentos mais inesperados, acenando para um belo Oscar de melhor atriz sem esforço (não visível, pelo menos). Cada fala, trejeito e reação de sua Jasmine faz ver Allen presente. Os ataques de pânico, a dificuldade para respirar no auge do desespero, a cota de misantropia: está tudo lá concentrado na personagem. E o que dizer dos seus olhos, de um azul hipnótico e sempre muito expressivos? A clássica frase que diz serem eles a janela da alma encontra representação perfeita na personagem. Ora vivazes em meio à riqueza, ora marejados pela inabilidade em lidar com universo “minimalista” em que teve de se inserir, eles são um dos maiores trunfos de que essa australiana se utiliza muito bem. Por sua vez, Hawkins faz uma codjuvante para espectador nenhum colocar defeito, com um sotaque estranho às primeiras escutas, mas facilmente absorvido e orgânico para sua personagem. Depois de um papel discreto em O sonho de Cassandra (Cassandra’s dream, 2007), ela tem muito mais chances de brilhar.

A outra (quase) novidade trazida por Allen em Blue Jasmine é sua parceria com Javier Aguirresarobe. É apenas a segunda vez que ele trabalha com o fotógrafo, que já colaborou com realizadores como Pedro Almodóvar [Fale com ela (Hable con ella, 2002)] e Alejandro Amenábar [Os outros (The others, 2001)], um caso raro em sua filmografia de nomes tão recorrentes nas funções técnicas. O espanhol acerta em cada detalhe dos ambientes que clica, esbanjando apuro visual e se garantindo nas cores alegres, tanto na antiga mansão de Jasmine quanto no simplório apartamento de Ginger. Foi uma escolha sábia de Allen retomar o contato com Aguirresarobe e novas parcerias serão muito bem-vindas. Na trilha sonora, o filme também não deixa a desejar, oferecendo deliciosos exemplares de jazz, outra paixão escancarada do diretor. Cada cena musicada por uma dessas canções fica ainda melhor.

A vocação cômica de Allen, todavia, nunca impediu que ele destilasse comentários corrosivos sobre a vida, o amor e a morte em geral. Jasmine e Ginger são grandes desafortunadas no campo do coração. A primeira era constantemente traída pelo marido Hal (Alec Baldwin, apropriadamente canastrão), que compensava as puladas de cerca mimando-a com joias e viagens, enquanto a segunda só escolhe pobretões por achar inconscientemente que é tudo o que merece, de acordo com a própria Jasmine. É nesse aspecto que se pode enxergar o pessimismo do diretor, que oferece soluções narrativas simples aos imbróglios que cria e, no caso de Blue Jasmine, encerra com um monólogo demolidor que coloca o público em dúvida, assim como já fez tantas vezes: é comédia ou tragédia?

9/10

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