Reconstrução de um amor: a perseguição a um ideal inalcançável
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Boe não está exatamente inventando a roda com Reconstrução de um amor, mas consegue dar a sua história um tratamento quase anticonvencional, conferindo ao romance do protagonista ares de ficção científica e metalinguagem. Em primeira instância, o realizador brinca com a própria construção da narrativa cinematográfica e com as amplas possibilidades que ela pode representar. Os personagens são localizados geograficamente antes de cada sequência - expediente algo descartável, mas válido dentro da proposta - e se movem em cena de acordo com o bel-prazer do tal narrador, por assim dizer. Contudo, mas do que um amor, a reconstrução pela qual o protagonista procura é a de sua vida, partindo, para isso, da resolução de sua demanda amorosa. A dúvida que se levanta com relação a "verdade" por trás daquela incerteza que passa a consumir Alex é amplificada pelo fato de ambas as mulheres que atravessam sua vida serem interpretadas pela mesma atriz. Maria Bonnevie é um escândalo de beleza, e torna totalmente crível o drama do personagem de Kaas, que persegue aquela mulher que lhe parece onírica e, ao mesmo tempo palpável. Simone e Aimee aparecem juntas em uma única sequência, e deixam em aberto se sabem ou não uma da outra. O fato é que este é um filme permeado por elipses e jogos de realidade/interpretação muito produtivo, por não se preocupar em responder às questões que levanta. Cabe ao público embarcar na investigação e concluir o que bem entender.
A grande questão que atravessa o longa-metragem não é o seu tema, mas a maneira através da qual a história é contada. Não há mais nada, dizem alguns, que já não tenha sido apresentado pelo cinema. Resta, então, inovar no estilo de narrativa dentro dessa arte de pouco mais de cem anos. O caos se instaura na vida de Alex a partir do momento em que ele dá vazão ao ímpeto de seguir Aimee, mesmo estando na companhia de sua namorada. O que acontece logo em seguida a essa procura do personagem é uma completa virada em sua vida. De um hora para outra, ele não é mais reconhecido por aqueles que o rodeiam, pessoas com quem sempre conviveu. Surge a indagação que passa a fazer parte do filme: tudo é apenas um jogo ou aquelas pessoas, de fato, não sabem mais quem é Alex? Desde o princípio, porém, um narrador onisciente que faz pequenas intervenções ao longo da trama lança uma dica, dizendo que tudo o que está sendo apresentado nessa história é uma construção. Mesmo assim, garante essa voz, vai doer. A dor pode ser física ou psicológica, mas ela surge, de fato, traduzida na angústia do fotógrafo, ávido de reestabelecer com a namorada e os amigos o contato que parece ter sido rompido.
Pode ser muito incômodo lidar com um filme que não se apressa em fechar raciocínios, mas em abrir portas para a construção do próprio espectador. Mas vale a pena deixar um pouco de lado os roteiros excessivamente pasteurizados e se entregar a uma abordagem que valoriza os fatos não filmados, as palavras não ditas e o que se localiza em uma estrutura profunda, acessível apenas por meio de uma leitura inferencial e exegética. Teorias mil são permitidas para se encaixar ao jogo cênico de um filme que, a exemplo de um contemporâneo e compatriota seu, vai além do óbvio no tratamento de esferas nefastas do ser humano: Dogville (idem, 2003). Como no longa de Von Trier, o pano de fundo das cenas é quase ou mais nítido que as cenas em si, e pavimentam um estética da sinceridade parecida com a proposta por Fernando Pessoa ao comparar o poeta ao um fingidor que finge tão bem uma dor que acaba sentindo verdadeiramente. Retoma-se aqui o comentário sobre o aviso do narrador: por mais que se trate de uma ficcionalização, a dor, o incômodo e a angústia podem surgir. Esses sentimentos decorrem de um apego à história, que apresenta traços tão críveis que permitem ao público comprar sua ideia. Outrossim, a temática das relações amorosas sempre terá a adesão dos espectadores, por se tratar de um assunto de comoção geral.
A ilusão do Cinema é posta em discussão com o quebra-cabeças de Reconstrução de um amor. Embora seu resultado final não o permita ser considerado uma obra-prima, há grandes méritos na estreia de Boe. Além dos que já foram comentados, ainda há que se destacar o desempenho marcante de Nikolaj Lie Kaas, um dos nomes mais frequentes nos créditos de filmes dinamarqueses, ao lado de Ulrich Thomsen. Ele une uma beleza bruta e exótica com um pulso firme para lidar com a agudeza dos sentimentos de um homem que se vê transtornado, com seu mundo fora do lugar. Seu desespero se desenvolve em uma gradação que o leva a questionar sua própria sanidade, embora ele busque se recusar a acreditar no caos que está vivendo. Nem mesmo sua casa está mais lugar, e sua senhoria chega ao ponto de afirmar que ela nunca existiu. Tudo isso seria consequência da sua traição? Teriam mudado todos por não reconhecê-lo como capaz de comenter esse erro e, então, passaram a não vê-lo mais como alguém familiar? Alex teria ido em busca de um ideal inalcançável de felicidade e completude, uma procura inerente ao ser humano. Entretanto, ela é um fim que justifica os meios por que ele passou?
Todo o filme é atravessado por um recorte surrealista e uma série de elementos que o transformam em uma espécie de noir romântico. A fotografia granulosa que marca várias sequências auxilia a envolver toda a narrativa em uma névoa espessa em que o mistério convida o espectador a desnudá-lo sutilmente. A luz azul, a exemplo do que faz em De olhos bem fechados (Eyes wild shut, 1999), acende a lanterna do sobressalto, como se algo de muito inesperado pudesse acontecer e inundar as cenas de uma atmosfera desoladora, o que também traz à memória um exemplar recente de filme que também se vale do recurso das cenas azuladas para compor um panorama de percurso temporal, o indizível Namorados para sempre (Blue valentine, 2010). Em cada um deles, a predominância dessa cor fria no tratamento da imagem tem um fim distinto, mas os três se aproximam porque a luz inebria e embriaga a percepção do espectador, atordoando seus sentidos. Se jogos interpretativos mais elaborados não forem um grande problema para quem assiste, Reconstrução de um amor pode se revelar uma sessão aflitivamente interessante e memorável.
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