Três é demais, uma observação sobre o lado cáustico da vida

Não se deixe enganar pelo título nacional ridículo. Três é demais (Rushmore, 1998) é a segunda incursão de Wes Anderson por trás das câmeras, e se revela uma obra espirituosa e inusitada sobre a multipolaridade de uma pessoa. No caso, a de Max Fischer (Jason Schwartzman), que reúne em si várias características que o tornam o arquétipo perfeito do CDF e, quiçá, do loser – aquele conceito tão nefasto engendrado nos EUA que caiu no uso popular dalém das fronteiras do país. Sua trajetória é acompanhada de perto pela câmera de Anderson, que o flagra no ambiente de uma escola de ensino médio, dentro do qual ele tem de lidar com a animosidade de seus colegas, que manifestam constante intento de atormentá-lo. Entretanto, Max não é exatamente (ou somente) daqueles jovens tímidos que experimentam o vilipêndio de forma omissa. Quando vê necessidade, ele adota uma conduta pró-ativa e faz acontecer para vingar seu orgulho nerd. 

O tal título nacional boboca ganha um leve sentido quando entram em cena os outros dois vértices daquilo que, em pouco tempo, configura-se como um triângulo amoroso. Max se torna amigo e, em seguida, apaixona-se pela Srta. Rosemary Cross (Olivia Williams), uma complicada professora da pré-escola. Para chegar junto dela, Max busca uma ajudinha de Herman Blume (Bill Murray, sensacional), um milionário cuja felicidade é inversamente proporcional à quantia pecuniária de que dispõe. Inicialmente o seu mentor, Herman logo se apaixona por Rosemary também, e a parceria entre ele e Max é inevitavelmente rompida: os dois passam a se digladiar, ocupando lados ostensivamente opostos em uma espécie de trincheira sentimental. A verdade é que ambos sucumbem às armadilhas de seus corações e demonstram grande falta de tato para lidar com elas. Com isso, surgem momentos engraçadíssimos em Três é demais.

Muitos dos elementos que se tornariam marcas registradas do realizador mais adiante se encontram presentes nesse filme. O principal deles é o olhar de sensibilidade e humor acurados sobre seus personagems, que coloca suas mazelas e pequenas bizarrices e contradições em alto-relevo. Tanto Max quanto Herman apresentam traços um tanto cartunescos, mas não é nada que comprometa a verossimilhança de ambos e impeça uma leve ou profunda identificação por parte do espectador. Max é do tipo multitalentos: já gastou boa parte de seu tempo livre em atividades extracurriculares das mais diversas possíveis, como cuidar da edição do jornal da escola ou presidir um clube de astronomia, e que são mostradas em uma sequência divertida e curiosa. Essa inclinação do personagem para ocupações tão díspares é um dos índices de sua personalidade complexa, difícil de encampar e resumir em duas ou três palavras. E é exatamente essa confluência de contradições que o tornam tão próximo do espírito de multiplicidade de tantos outros jovens. Seu jeito de ser leva até mesmo a pensar que ele poderia perfeitamente ser um sobrinho ou um neto do Boris Yellnikoff (Larry David) de Tudo pode dar certo (Wheatever works, 2009), outro sujeito de vários talentos e que, como Max, exibia um comportamento algo misantropo.



Por sua vez, Murray faz misérias interpretativas na pele e no corpo de Herman, iniciando aqui uma parceria altamente produtiva com Anderson, a qual permanece até hoje e já rendeu seis filmes contando com esse e passando pela animação O fantástico Sr. Raposo (The fantastic Mr. Fox, 2009), na qual usou apenas sua voz para dar vida ao Texugo. No filme em questão, ele confere uma mistura de graça e impavidez ao seu Herman, somada a alguns espasmos melancólicos que fazem oscilar o sentimento de apreço pelo personagem. Afinal de contas, ele entra no meio da jogada de Max – com quem, àquela altura, já simpatizávamos – e tira tudo de seu lugar. Por outro lado, não chega a ser possível classificar um ou outro como vilão ou mocinho: esse tipo de nomenclatura não encontra respaldo na filmografia de Anderson, cujo nome, aliás, traz as mesmas iniciais de Woody Allen, outro mestre no árduo trabalho de construção de caricaturas plausíveis. A comparação entre Max e Boris, portanto, é mais uma das associações possíveis e imagináveis entre as obras de ambos, de qualidade e relevância bem próximas.

O campo de Anderson foi e continua sendo o cinema independente. Seus filmes não demontram a menor preocupação em alcançar platerias numerosas: antes, trazem consigo toda a fidelidade do diretor a um estilo próprio, particular e que dialoga com outras referências ao mesmo tempo. Três é demais se mostra exatamente assim. Com seus 90 e poucos minutos de duração, o filme destila uma narrativa fluente e personagens cômicos e multidimensionais com quem se poderia facilmente esbarrar nos corredores da vida, além de meditar, com discreta irreverência, sobre nossas tendências a falas e atitudes tantas vezes incoerentes. Anderson também gosta de colaborações duradouras, daí a recorrência de Murray e do próprio Schwartzman em sua filmografia, assim como Owen Wilson, com quem também conserva uma relação de co-autoria em vários de seus trabalhos, incluindo esse. E ainda sobra espaço para as pontas de Connie Nielsen e Luke Wilson, atores subestimados para boa parte da crítica que têm lá o seu valor. Com Três é demais, Anderson nos faz perceber que, quando o assunto são as querelas do coração, atos inesperados vêm como cartas na manga. E os absurdos da vida são melhor analisados com umas boas pitadas de sarcasmo.

8/10

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