Gritos e sussurros, o desespero da condição humana


Dentre as palavras mais recorrentes quando se menciona a obra de Ingmar Bergman, “alma” é uma das mais aplicáveis aos contextos engendrados pelo diretor em seus filmes. Em Gritos e sussurros (Viskningar och rop, 1972), o termo é uma espécie de guia pela jornada angustiante de três irmãs que habitam uma casa de campo no século XIX. Agnes (Harriet Andersson), Karin (Ingrid Thulin) e Maria (Liv Ullmann) são o retrato do desamparo e do desencanto, traduzido em olhares perdidos, choros incontidos e gestos extremos. A primeira está muito doente e carece de cuidados especiais, ainda que, no atual estágio de sua enfermidade, eles sejam apenas paliativos. As outras duas são confrontadas com a dor da existência em um alto grau ao lidar com essa situação difícil. Com base nessa premissa, o realizador sueco impingiu mais um conto de reverberações imagéticas e desconforto aos seus espectadores, revelando-se com uma de suas produções mais plurissignificativas.

Os grandes trunfos de Gritos e sussurros estão a olhos vistos: suas intérpretes e sua fotografia. A tríade de atrizes, das mais recorrentes na filmografia de Bergman, encarnam – não há termo mais adequado para designar o que elas fazem aqui – a desolação e os incômodos mais profundos atravessados por quem vive. O simples fato de estar vivo já é uma ocasião para experimentar muitas dores e dilações, e é esse aspecto do homem que cada uma delas sublinha. Moribunda, Agnes representa a agonia final de quem estar perto de se encontrar com a Morte, aquela mesma da qual um dia Antonius Block (Max Von Sydow) tentara escapar em O sétimo selo (Det Sjunde Inseglet, 1957). Em sua luta pela vida, ela serve de ligação entre as outras irmãs, que não demonstram nunca ter tido uma relação muito fácil e saudável entre si. Karin vivencia a inabilidade em lidar com os próprios sentimentos e desejos, sendo capaz de frear de modo drástico a evidência concreta de seu prazer, em uma das cenas mais atordoantes do filme. Maria é outra deslocada, dependente da tutela das irmãs mais velhas e muito apegada à infância, para a qual seu olhar é de ternura e saudosismo.

Com relação ao trunfo da fotografia, ele existe porque esse aspecto técnico do longa está nas mãos do grande Sven Nykvist. Colaborador fidedigno de Bergman em sua fase madura, ele matiza os tons ocres, avermelhados e alaranjados, do amanhecer ao ocaso, no cotidiano de Agnes, Karin e Maria, como quem destila cada centelha de impureza e clarifica sensações que seriam insuficientemente descritas através da linguagem verbal. Trata-se, antes de tudo, de uma fotografia rodófila, consonântica com a imaginação de Bergman, que pensava, quando criança, que a alma humana era vermelha. Partindo dessa concepção, é perceptível o quanto a cor invade os espaços do filme e sublinha as angústias particular e coletiva enfrentadas pelas irmãs. Sem falar que o vermelho é uma das cores quentes, e tem uso na representação da paixão, que pode ser lida em sua acepção mais abrangente e grega: a do sentimento. Gritos e sussurros é, portanto, um filme carregado de sentimento e poesia dolorida, daquelas que se faz com o sangue que jorra do coração e o pincel cruento dos dedos nervosos, ágeis e ávidos de entender e aliviar o desconforto da condição que é inerente ao homem, derivada de sua natureza errante.


Muitas passagens do longa são tão plenas de significado que é bastante provável que eles sejam perdidos de vista em um primeiro contato com a obra. Vale muito a pena assistir a Gritos e sussurros ao menos duas vezes e, ainda assim, é possível não se dar conta de tantas entrelinhas, o que configura o filme como uma daquelas experiências sempre novas e mágicas, emblemas da dificuldade do próprio Bergman em lidar com seus fantasmas interiores, que ele procurava expor em seus filmes. Seu público agradece, pois consegue se ver em muitas das personas caídas que ele retratou ao longo de uma carreira de 64 exemplares cinematográficos, tanto para a tela grande quanto para a televisão. No caso específico do filme em análise, é importante observar até mesmo o seu título, alusivo não somente aos sons que os seres humanos podem emitir com suas vozes, mas também aos tons perturbadores oriundos dos poços mais profundos de suas almas. Nem sempre sabemos gritar, e tudo que nos resta, nesses momentos, é um simples sussurro, como um pedido de socorro tão intenso em desespero quanto baixo em volume. Agnes, Karin e Maria são, todas elas, gritos e sussurros, cada uma a seu tempo.

É lamentável saber que Bergman enfrentou problemas na feitura e na distribuição do filme, que se situa no ínterim entre A hora do amor (Beröringen, 1971), sua incursão nos EUA, e Cenas de um casamento (Scener ur ett Äktenskap, 1973), brilhante estudo de uma relação a dois. Ele teve de desembolsar seu próprio dinheiro para cobrir as despesas necessárias à realização do filme e, felizmente, conseguiu trazê-lo à existência, mesmo a duras penas. E, para isso, também contou com alguns de seus fiéis parceiros, como as atrizes principais e o diretor de fotografia, além de seu amigo de longa data Erland Josephson, que faz uma participação relativamente rápida como David, o médico que trata de Agnes. Longe de propor chaves de leitura, esse texto é um convite incisivo ao contato com o filme. Definitivamente, Gritos e sussuros não é uma sessão para quem procura relaxar e desopilar o fígado, senão um confronto férreo com lados incômodos da condição humana, com o qual a maioria – talvez todos – de nós temos grande dificuldade em lidar, e tentamos manter confinados em masmorras profundas e subterrâneas, às quais evitamos descer, mas que, inexoravelmente, cobram seu espaço cedo ou tarde.

Comentários

  1. Excelente e brilhante, texto, Patrick. Muito bom!!! Acabei de lê-lo em uma tirada só. Sou fã de Bergman como, talvez, já tenha percebido em uma Sessão que destinei a ele. Este, "Gritos e Sussuros" é um dos Grandes deste cineasta. Como você ressaltou a ideia das cores é temático neste filme. A frieza nas relações é levda por diretor até as últimas consequências. A morte é um aspecto forte em toda trajetória de Bergman. O suícídio ou pelo menos a sua tentativa reaparece, aqui. São tantos detalhes, inclusive a música, que ficamos inertes só observando e digerindo que já não é uma tarefa fácil. Como você bem o diz, Patrick: "não é uma sessão para quem procura relaxar e desopilar o fígado". Um abraço e até a próxima...

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  2. Mais uma vez, obrigado, Maxwell!
    Não é nada fácil escrever sobre um filme tão rico e denso como esse, mas me esforcei nessa tarefa.
    Você é sempre bem-vindo por aqui.
    Abraço!

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  3. Lembro bem de quando vi uma chamada para duas obras de Bergman na TV. Nunca tinha visto um filme dele, mas aquilo me instigou de uma maneira que não resisti e assisti. Primeiro Persona, uma obra-prima hermética e deliciosamente intensa. Após alguns dias, pude conferir o outro, Gritos e Sussurros, uma dose tão intensa de dor e silêncio quanto o vermelho tão comentado do filme. A partir daqueles dias, a obra de Bergman foi visitada e continua sendo revisitada por mim, mas esses dois primeiros filmes jamais vou esquecer.

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