Dançando no escuro e a esperança fustigada


À primeira vista, parece impensável associar a direção de Lars Von Trier a um musical. Entretanto, quando se pensa que, vindo dele, nem mesmo um filme desse gênero possa seguir fielmente a gramática à qual, de hábito, está atrelado, torna-se possível conceber que ele seja o nome principal por trás de Dançando no escuro (Dancer in the dark, 2000). Sua costumeira ausência de compaixão com protagonistas do sexo feminino atinge o ápice nesse filme, cheio de vida, alma, esperança e atrocidades. Na pele de Selma Jezkova, Björk é capaz de deixar queixos caídos com uma interpretação magnética e de alto poder de comoção. Ela é uma operária que enfrenta uma série de dramas, sendo o maior deles a sua doença degenerativa nos olhos, que lhe está causando a perda progressiva da visão. Consciente de que ficar totalmente cega é apenas uma questão de tempo, ela empreende todos os seus esforços na direção do filho único, que herdou a enfermidade, trabalhando em todos os horários possíveis a fim de obter o quanto antes o dinheiro para a cirurgia do garoto, para o qual ainda há chances de cura.

A partir dessa premissa, Von Trier desenvolve o enredo do filme, pontilhado por inserções dramáticas um tanto improváveis e de potência sentimental atordoante. Essencialmente, Dançando no escuro é um drama, mas acaba por se tornar também um musical por conta de alguns números cantados por Selma, que são sempre devaneios de sua mente esperançosa, tentativas de lidar melhor com sua dura realidade à medida que o caos e os reveses adentram o seu cotidiano de trabalho extenuante e pouquíssimos amigos. Ao seu lado, está a sempre cuidadosa Kathy (Catherine Deneuve), a única pessoa com a qual ela pode realmente contar em sua vida. Devotada e simpática, Kathy faz questão de ajudá-la no que for preciso e, diante da cegueira iminente da amiga, chega ao ponto de, em muitos momentos, ser seus olhos. E Selma sabe lhe ser grata, valorizando a companhia de Kathy e se preocupando em não se transformar em um fardo para ela. Enquanto isso, a protagonista é rondada por Bill (David Morse), a ganância em forma de homem.

Com problemas financeiros, Bill vê nas economias de Selma a solução mais fácil e prática, e ele não desiste de descobrir o esconderijo da alta quantia que Selma vem acumulando. Morse encarna com afinco seu personagem, tornando-o um sujeito tenebroso que desperta o asco por meio de seus gestos sem um pingo de compaixão. Olhar para Bill é lembrar que existem por aí muitas pessoas igualmente ambiciosas e desprovidas de respeito e amor ao próximo, sobretudo em um mundo em que o dinheiro, é, além de tudo, combustível para relações interesseiras. Vulnerável, Selma é a presa perfeita para a maleficiência de Bill, que lhe assalta e brame leoninamente ao seu derredor, como uma espécie de figura diabólica, extremamente perniciosa. Dito isso, é possível ler Dançando no escuro como uma alegoria sobre a esperança. Uma esperança fustigada, maltratada, ferida, atingida em suas raízes profundas. Selma é a esperança, e o mundo ao seu redor lhe impinge duras provas de resistência, às quais parece inevitável escapar. A personagem permite um paralelo com outra protagonista do cinema escandinavo, a Iris (Kati Outinen) de A garota da fábrica de caixas de fósforos (Tulitikkutehtaan tyttö, 1990), um dos dramas pungentes e enxutos de Aki Kaurismäki. Ambos falam de sentimentos nobres sintetizados em uma protagonista inocente, que vê seu mundo desabar através de uma série de acontecimentos trágicos.


Diante do desempenho formidável de Björk, é difícil imaginar que os bastidores do longa foram pontuados por dificuldades. A cantora, cuja personagem nesse filme é sua única incursão no ofício de atriz, teve sérios desentendimentos com Von Trier, chegando a abandonar o set de filmagens por duas semanas. É sabido que o realizador não tem uma personalidade muito acessível, o que, certamente, propiciou as desavenças entre eles. Em Dogville (idem, 2003), seu filme posterior, aconteceu um fato semelhante entre ele e Nicole Kidman, que chegou a declarar que não trabalharia de novo com o diretor – ela mordeu a língua e está no elenco de The nynphomaniac. A despeito de quaisquer rusgas e querelas, ela retomou seu trabalho e permaneceu entregue à árdua tarefa de dar corpo, voz e emoção a uma mulher sobre cuja persistência incidem fortes ondas. Talvez seja o caso mais de maior talento de uma cantora fazendo as vezes de atriz, fato que vem ocorrendo com certa frequência no cinema – veja-se o caso recente de Norah Jones em Um beijo roubado (My blueberry nights, 2007). É uma pena que a islandesa jamais tenha se aventurado outra vez nessa missão, seja por falta de novos convites, seja por desinteresse, afinal ela mesma disse que não atuaria em um filme novamente.

Voltando à parte musical do filme, uma de suas canções foi indicada ao Oscar, a dolorida e esperançosa I’ve seen it all, que evoca o olhar terno de Selma, em permanente luta contra as vicissitudes, mantendo aceso o farol de ternura e intensa fé, até mesmo no homem, o que contribui para que ela caia na rede lançada por Bill. Poucos dramas recentes são tão torturantes quanto Dançando no escuro. Ao mesmo tempo, Von Trier subscreve um discurso favorável à esperança, em vez de simplesmente rechaçá-la. E as demais canções entoadas por Selma funcionam também como uma homenagem interessante ao próprio cinema, uma das grandes paixões da personagem, que vê nele um refúgio para suas dores psicológicas, e esse aspecto de sua personalidade a torna uma espécie de versão mais densa da Cecilia (Mia Farrow) de A rosa púrpura do Cairo (The purple rose of Cairo, 1985), estabelecendo um cotejo aparentemente improvável entre a obra de Lars Von Trier e Woody Allen. Em seu ato final, Dançando no escuro traz o golpe de misericórdia à persistência de sua protagonista alegórica e um contraponto emocionante e quase redentor a tanta desolação. E, como espectadores, somos entregues à estupefação.


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