O flagrante da indisposição amorosa em Um verão escaldante


Debruçado novamente sobre a temática das relações amorosas, Philippe Garrel concebeu Um verão escaldante (Un été brûlant, 2011), mais um atestado do quanto ele pode ser hábil na condução de tramas que versam sobre a queda, por vezes fatal, que todos os homens apresentam para as paixões. O diretor costuma transitar por esse território em escala de cinza mas, aqui, retomou as cores que não usava desde O vento da noite (Le vent de la nuit, 1999), e depura um estilo que vem cultivando há algumas décadas. Novamente, elege o filho Louis Garrel como protagonista e, dessa vez, ele dá vida a Frédéric, um pintor lânguido que está casado há alguns anos com a estonteante Angèle (Monica Belucci), e cujo relacionamento é constantemente cortejado pelo tédio e pela dessintonia. Ambos ainda se amam. Porém, como o diretor gosta de sentenciar, apenas o amor não basta: é preciso algo mais que possa amarrar os amantes e dissipar nuvens de incerteza, ainda que seja impossível removê-las por completo no fim das contas.

Não há uma sinopse delimitada em Um verão escaldante, cujo roteiro cabe a Marc Cholodenko, habitual colaborador de Garrel. Basicamente, existem os ângulos de observação nem sempre otimistas a respeito das dificuldades de um relacionamento. O filme não tem muito a acrescentar a esse respeito, e nem parece ter sido essa a pretensão do Garrel pai ao elaborá-lo. Talvez ele tenha querido apenas flagrar mais uma vez a velha agonia dos amantes que, em sua condição de ineptos, tateiam o caminho para o coração da pessoa amada em busca de habitá-lo pelo mais longo tempo; se possível, pelo resto de suas vidas. Mas não há terreno mais cheio de incertezas do que o do amor. Até onde pode durar a harmonia entre Frédéric e Angèle? O pintor se atormenta, e sente que seu amor, aquele sentimento de estar preso por vontade de que tratou Camões, pode não ser correspondido pelo tempo que ele tanto deseja. Enquanto há reciprocidade, vale a pena. Do contrário, a parte que não recebe a retribuição terminará abalada. E, nessa gangorra de sentimentos, que, por vezes, fenecem tão facilmente quanto surgem, Frédéric é a parte que sofre

A tragédia de um artista e sua musa é o cerne do filme, uma espécie de súmula da temática na qual A fronteira da alvorada (La frontière de l’aube, 2008), seu filme imediatamente anterior, também está embebido. Se neste havia a presença resplandecente e loura de Laura Smet, no filme em análise existe a figura perturbadoramente bela de Belucci, que exercita o seu francês, uma língua de certo apelo sensual que tem essa carcaterística amplificada ao ser proferida por seus lábios róseos. Ela é o fogo fátuo que incendeia o coração de Frédéric e o faz pedir arrego e clamar por tê-la sempre ao seu lado, mesmo depois de se dar conta de que a tal reciprocidade indispensável ao amor só faz diminuir da parte dela. É então que o realizador demonstra o quanto as pessoas podem ser imaturas e inconsequentes diante da constatação da finitude de um amor que outrora lhe fora dedicado tão intensamente. Nesse sentido, o pintor é o amante destemperado, que não sabe lidar com a frustração da progressiva indiferença de seu objeto de desejo.


Emoldurando toda essa história de pathos, há uma fotografia esplêndida, que se abre em uma paleta de cores e dores amplas, assinada por Willy Kurant, veterano que conta, entre outros títulos, com Masculino, feminino (Masculin féminin: 15 faits précis, 1966), do lendário Godard. A preocupação com as gradações de tom estão presentes em cada detalhe de Um verão escaldante, inclusive nas combinações de camisa e paletó usados por Frédéric, que vão do roxo ao verde. Trata-se de uma escolha feliz ao se pensar que as cores são parte integrante do cotidiano de um pintor, como é o caso do protagonista. Amante de sua própria arte, ele enfrenta a própria miopia ao tardar a perceber que Angèle entrou em um processo de distanciamento que parece irreversível. Nesta situação, resta a ele a companhia fiel de Paul (Jérôme Robart), o amigo que presencia as fases de separação do então casal. Garrel pai nos faz ver que o amor tem estágios, seja para florescer, seja para murchar. E, muitas vezes, não se enxerga a sua derrocada por cegueira voluntária, assim como acontece com Frédéric. Durante essa sua insistente necessidade da presença de Angèle, o diretor ainda aproveita para debater sutilmente a respeito de uma França regida por um certo Sarkozy, através dos protestos dos personagens quanto ao atual estado das coisas em seu país.

Na falta de ambição em inovar, o longa analisa em ritmo de vaivém o pesar e o descontentamento que inunda a alma do pintor, ferido de morte pela traição de Angèle, resumida em forma de emblema na sequência em que ela dança sensual e despreocupadamente com um outro homem durante uma festa. Com ele, ela é capaz de sorrir, algo que já não faz há muito com o marido, e de se entregar aos passos ditados pela melodia contagiante de Truth begins, a canção que embala a cena. Garrel ama colocar seus personagens para bailar: ele já havia feito isso em Amantes constantes (Les amants réguliers, 2004), e muito bem, por sinal. A diferença é que, em Um verão escaldante, a dança indica a tomada de rumos distintos pelos protagonistas. Cada vez mais Frédéric e Angèle são sul e norte, pontos cardeais incompatíveis simultaneamente, impossíveis de sincronizar. De modo prosaico, o cineasta extrai beleza dessa dor e questiona: o fim do amor é o fim do mundo? A maioria há de concordar que não. Seja como for, o clamor pungente de Frédéric o leva às últimas consequências e encerra o filme como mais um exemplar das pontuais reflexões de um diretor sobre a agudeza dos sentimentos.

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