Rascunhos da vida, do amor e do cinema ou O demônio das onze horas


"Jamais diga que você vai me amar pra sempre / Jamais me prometa me adorar por toda a vida / Jamais troquemos essas declarações, me conhecendo e te conhecendo / Fiquemos com o sentimento que nosso amor, dia a dia / Que nosso amor é um amor sem amanhã".

O conceito de menefreghista é bastante útil para dimensionar o espectador na proposta de Jean-Luc Godard em O demônio das onze horas (Pierrot le fou, 1965). Oriunda do italiano, a palavra não encontra uma tradução satisfatória em português, que carece de um adjetivo equivalente. Resta, então, a explicação mais analítica: trata-se de uma pessoa que não se importa com nada, que não esquenta a cabeça, que não está nem aí. Deriva do verbo fregarsi, que corresponde ao verbo importar-se do português. Esse espírito de “não estou nem aí” toma conta do filme e enche a tela de uma interessante sequência de cenas aleatórias que, a qualquer momento, sem aviso prévio, pode contagiar este texto. São rascunhos da vida. Vida: essa palavra abrange tanta coisa, é tão ampla... Exatamente por ser tão ampla, dá conta de encampar boa parte (ou toda, por que não?) história de Marianne (Anna Karina) e Ferdinand (Jean-Paul Belmondo), chamado por ela Pierrot. Existe uma vida em comum entre eles. Uma vida em comum que se interrompeu, mas que ganha continuação quando ele decide fugir com ela para longe, sem rumo, pelo cansaço diante do casamento atual.

Equilibrando frustração e expectativa, ele cai na estrada com a linda garota, sem eira nem beira. Opa, um road movie? Não, não exatamente. É melhor esquecer esses termos muito especificadores, o que tornará muito mais preciosa a experiência de se assistir ao filme, tão rico em pequenos e grandes simbolismos que, ao primeiro olhar, podem passar batidos. Seja por que são muito discretos, seja porque são muito óbvios. Aí mora o perigo: se é óbvio, o que mais vai ser dito sobre aquilo? E o olhar se desvia, já dá a informação por conhecida. Su questo non ci piove, diriam os italianos. Falar sobre isso é chover no molhado, diriam os brasileiros. Mas não é nada. Vale mais a pena redobrar a atenção e perceber a balada potente conduzida por Godard, que dinamita convenções e convicções e diz na lata: a hipocrisia não está com nada, vão todos se ferrar. O que Marianne e Ferdinand desejam, a sociedade não está disposta a oferecer. Então é melhor sair por aí sem dar satisfação a ninguém, reinventando a própria vida e desatando liames que não prestam para porcaria nenhuma. Um brinde à intensidade!

Os protagonistas são vivazes, empolgados, querem a vida com mais simplicidade, por mais complexo que seja conseguir isso. Ferdinand se cansou do intelectualismo gélido que não contempla seus reais desejos: ele quer vida pulsante. Marianne também (pelo menos deve ser por isso que ela o acompanha). O demônio das onze horas é cheio de incertezas. O mundo é assim também. Tudo muda o tempo todo no mundo. Os sentimentos então... hoje se amam, amanhã se aturam, depois de amanhã se odeiam. Marianne que o diga, já que acaba traindo Ferdinand/Pierrot e o desilude profundamente. Antes disso, porém, muitos momentos felizes – ou seriam momentos contentes? As palavras e as coisas. Os sentimentos. Quando se pensa em dar nomes aos sentimentos, o abismo entre as palavras e as coisas aumenta ainda mais. Fica abissal. Paradoxal e redundante, contraditório. Eu digo o que escrevo? Escrevo sobre o que digo? Vivo? Idealizo? Diante de uma tela com tonalidades mil espargidas, há muito o que se pensar mesmo.


A coerência, tão exigida nas relações humanas, cuja ausência é tão difícil de relevar ou perdoar, embora seja tão difícil de se manter, não é constante em O demônio das onze horas. Aliás, de onde saiu esse título? Só parece fazer sentido se pensado como uma colaboração à proposta “DANE-SE TUDO” de Godard. Engraçado... um demônio que não chega à meia-noite. O mundo está sem direção mesmo. Em um mundo assim, nem Marianne pode amar Ferdinand a vida inteira nem Ferdinand pode ser amado por Marianne a vida inteira. O amor duradouro não existe (mais)? É melhor procurar mais um pouco, deve haver algo de errado na sua maneira de procurar por ele. Larga esse fatalismo... E se eu quiser jogar o meu carro na água? Eu posso fazer isso, Marianne, se é disso que você precisa para entender o quanto amo você. E não é que ele faz mesmo? Quem diria... Onde está o fio narrativo disso tudo? Como amarrar todas essas sequências de fuga e caminhada a esmo? Talvez não importe. Fruir o filme é bem melhor. Cinema é imagem. Olhe de novo. De novo. De novo. Ainda que nunca faça sentido totalmente, não custa nada dar uma chance à falta de sentido e simplesmente mergulhar – em meio ao aparente nonsense completo, constatações agridoces se camuflam, disfarçadas até mesmo de bomba, que vem dinamitar de uma vez por todas esse coração corroído pela saudade.

Há coisas de que vamos gostando mais com o tempo, conforme vamos pensando mais e mais nelas. Tão linda a Riviera Francesa. Aqueles caminhos, aqueles lugares todos por onde Marianne e Ferdinand passam, despreocupados, lânguidos. Até onde podem ser... até quando é isso? Melhor não pensar. De repente, nem chega esse quando. Raoul Coutard fez um ótimo trabalho como diretor de fotografia. São paisagens lindas, lindas, lindas. Anna Karina/Marianne, tão linda... dá vontade de brindar ao amor pelos olhos, ao amor aos olhos, aos olhos do amor, ao amor ao amor. Então é melhor brindar mesmo, a estrada da vida tem um ponto de chegada: é finita. Tudo acaba, tudo acabará. Um livro – Godard se baseou em um romance de Lionel White – chega à sua última página, um espetáculo chega ao seu derradeiro ato, uma pintura chega à sua última pincelada, um show chega à sua última música, assim como um filme chega ao seu último fotograma. E existem mil formas de se terminar um filme, tanto quanto existem mil formas de começar. Tanto quanto existem formas de se conduzir a vida, o livre arbítrio está aí para ser usado como bem se entender. Cara pintada. Um estouro.

Comentários

Postagens mais visitadas